Para responder a uma pergunta que surgiu logo no início da pandemia e ainda está em aberto, uma equipe de cientistas decidiu observar, a nível microscópico, como proteínas do coronavírus Sars-CoV-2 interagem com proteínas de células humanas antes de infectá-las.
A pergunta que vem motivando dezenas de pesquisas como essa, divulgada no último mês, é a seguinte: o coronavírus tende mais a ser mais perigoso para algum tipo sanguíneo do sistema ABO — O, A, B ou AB?
A resposta oferecida pela pesquisa, publicada em março na revista científica Blood Advances, foi a de que sim, o coronavírus mostra uma “forte preferência” em se ligar a proteínas que só o tipo sanguíneo A tem, particularmente aquelas presentes nas células respiratórias nos pulmões.
O mesmo não foi observado em células dos tipos sanguíneos B ou O, também avaliadas.
Segundos os autores, das faculdades de medicina de Harvard e Emory (EUA), o experimento demonstrou “conexão direta entre o tipo sanguíneo A e o SARS-CoV-2” e é uma “evidência adicional de que alguns tipos sanguíneos podem estar associados com um risco maior de contrair a doença”.
Entretanto, cientistas entrevistados pela BBC News Brasil alertam que resultados como esse são preliminares e que não há consenso sobre a associação entre tipos sanguíneos e covid-19. Portanto, ter um ou outro tipo sanguíneo não é motivo para desespero e menos ainda para descuido com medidas preventivas contra a doença.
A desconfiança de que a covid-19 poderia se manifestar de forma diferente, a depender do tipo sanguíneo, veio em parte pelo fato de que algumas doenças demonstraram ser influenciadas por isso. Estudos já apontaram maior vulnerabilidade ou proteção de certos tipos sanguíneos a enfermidades como malária, hepatite B, AIDS, infecções pelos vírus Norwalk e pela bactéria H. pylori, entre outras.
E, mais importante, no surto causado pelo SARS-Cov — “parente” do SARS-CoV-2 — no início dos anos 2000, alguns cientistas encontraram evidências de que o sangue tipo O poderia ter um efeito protetivo contra o vírus. Isso foi reforçado pelo próprio estudo na Blood Advances do mês passado, que verificou em laboratório que o SARS-Cov tem a mesma preferência por células respiratórias presentes em pessoas do tipo sanguíneo A.
Sobre o SARS-CoV-2, a primeira grande evidência neste sentido veio em março de 2020, quando pesquisadores de instituições chinesas publicaram um artigo do tipo pré-print (sem a avaliação dos pares, um procedimento padrão de revistas de excelência, pelo qual cientistas independentes julgam um estudo) com dados de pessoas infectadas e tratadas nas cidades de Wuhan e Shenzhen.
A distribuição de pessoas por tipo sanguíneo neste conjunto de pacientes foi então comparada com um outro grupo, contendo um número de pessoas semelhante e vivendo nas mesmas cidades — só que elas não estavam infectadas.
O percentual de pessoas com tipo A foi maior no grupo de infectados do que na população “normal”, enquanto o de pessoas com tipo O foi menor entre os pacientes com covid-19. Além do risco de infecção, pesquisadores disseram também que o risco de morte era maior no tipo A e menor no tipo O.
Pesquisas com resultados distintos
Desde então, dezenas de outros estudos sobre o assunto foram publicadas pelo mundo — alguns com resultados significativamente diferentes do apontado pelo pré-print chinês.
Isso nos lembra que, na ciência, o que pode parecer com idas e vindas, contradições e até erros é, na verdade, parte do próprio processo científico — como explicou a bióloga Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, à BBC News Brasil no ano passado.
“A ciência não é dogmática, ela tem um processo contínuo de acúmulo de evidências. Neste momento, trabalhamos com as melhores evidências existentes. Esse processo às vezes passa a impressão de que o cientista não sabe o que está fazendo, que ele muda de ideia. A ciência muda de ideia, sim — tem que mudar, quando está diante das melhores evidências.”
Embora alguns estudos tenham abordado também o fator Rh — positivo ou negativo, ou o + ou – que aparece ao lado das letras —, a maioria priorizou apenas o chamado sistema ABO.
Publicado em julho de 2020 na revista científica Annals of Hematology, um trabalho de médicos atuando em Boston (EUA) confirmou que pessoas com tipos sanguíneos B e AB tinham maior probabilidade de receber um teste positivo para coronavírus, enquanto os com tipo O tinham menor probabilidade.
O tipo sanguíneo A, destaque preocupante em outros estudos, apareceu neste como estatisticamente indiferente na maior ou menor probabilidade de infecção. O estudo considerou dados de aproximadamente 1,2 mil pessoas com testes positivos para covid-19.
Diferente do observado nas infecções, o artigo na Annals of Hematology afirmou que, em relação ao risco de intubação ou morte, o grupo sanguíneo ABO pareceu não interferir.
Em outubro de 2020, um novo estudo, com dados nacionais da Dinamarca, mostrou que o tipo O teve um efeito de proteção contra a infecção por covid-19, mas o tipo sanguíneo não apresentou influência no risco de hospitalização ou morte.
A pesquisa comparou a distribuição percentual por tipo sanguíneo de um grupo de 7.422 pessoas com covid-19 confirmada com dados populacionais de referência, de pessoas não testadas, reunindo cerca de 2,2 milhões de pessoas. Enquanto, entre os infectados, 38% eram do grupo O, na população em geral o percentual era de 42%, indicando que esse tipo sanguíneo seria menos vulnerável à infecção pelo SARS-CoV-2.
O ‘estudo ideal’ para o tema
Em uma troca de e-mails com a BBC News Brasil, Sean R. Stowell, médico e pesquisador no hospital Brigham and Women’s, em Boston, opinou sobre diferentes resultados entre os estudos, inclusive em comparação com o seu — ele é um dos autores da publicação, em março de 2021, na Blood Advances.
Segundo Stowell, metodologias distintas e outros fatores influenciando a infecção e agravamento da covid-19, para além do tipo sanguíneo, explicam diferentes resultados. É possível imaginar o tipo de estudo ideal para responder à questão, mas ele seria impossível de ser realizado.
“Um estudo prospectivo com uma população de pacientes com tipos sanguíneos conhecidos e uma igual exposição ao vírus seria necessário. Mas um trabalho deste tipo provavelmente nunca vai acontecer, então, sob uma rigorosa perspectiva clínica e correlacional, acho que vai ser impossível saber com certeza (se o tipo sanguíneo influencia ou não)”, escreveu o médico e PhD.
“Qual seria o tipo de pesquisa ‘ideal’ para responder a essa questão? Seria justamente uma análise da exposição ao vírus entre pessoas com diferentes tipos sanguíneos. Entretanto, um estudo assim seria completamente antiético e, portanto, nunca será feito. Como consequência, nos restam estudos de correlação e experimentos em laboratório com o vírus.”
Ele continua: “Por isso nos voltamos ao vírus e aos antígenos (proteínas) dos grupos sanguíneos em si, e descobrimos que uma estrutura-chave na superfície do vírus que ele usa para entrar nas nossas células e infectá-las também se liga diretamente ao tipo sanguíneo A. Esses resultados são os primeiros a demonstrar uma associação direta entre o tipo A e o SARS-CoV-2, mas novos estudos certamente são necessários”, concluiu, apontando ainda para a importância de pesquisas considerando novas variantes do coronavírus.
No Brasil
Pesquisadores e médicos brasileiros também estão buscando, por aqui, correlações entre tipo sanguíneo e covid-19.
O médico Gil de Santis, hemoterapeuta do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, brinca que “caiu no colo” dele o dado de maior prevalência de pessoas com tipo sanguíneo A entre os pacientes mais graves.
Ele e sua equipe estavam realizando um ensaio clínico randomizado controlado (experimento envolvendo humanos que é considerado “padrão ouro” em testes com remédios e vacinas) com o tratamento de plasma convalescente (a parte líquida do sangue, contendo anticorpos que podem ser infundidos em outras pessoas adoecidas com covid-19), quando perceberam outra coisa.
“Alguns meses depois do início do ensaio clínico, percebi que tinha uma coisa muito esquisita ali. A gente tinha que tipar (registrar o tipo sanguíneo) os pacientes para transfundir o plasma, e percebi que tinha muito mais A do que O — uma inversão do que se observa na população, tanto a brasileira quanto a nossa”, conta.
A reportagem não encontrou dados atualizados e consolidados da divisão sanguínea no Brasil, já que é mais comum que hemocentros em diferentes cidades e estados façam esse levantamento a nível local. Entretanto, segundo os entrevistados, a maior parcela da população brasileira é do tipo O, seguido do A (ambos entre 40-50% da população), B e AB (ambos com menos de 10%).
A tipagem sanguínea está associada a grupos étnicos, entre outros fatores, portanto diferentes partes do mundo podem ter quadros de distribuição bastante diferentes.
A equipe de Ribeirão Preto então comparou o percentual por tipo sanguíneo em um grupo de 72 pacientes com covid-19 grave contra 160 pessoas em um grupo controle, da população local. O tipo A se mostrou mais presente no grupo de pacientes do que o normal (51% versus 30% na população), enquanto o O se mostrou menos presente entre os doentes graves (31,9% versus 48% no grupo controle).
Ser do tipo A significou um risco 2,5 vezes maior de gravidade, na comparação com O. Os resultados completos devem ser publicados em breve em uma revista científica estrangeira.
“Mas é importante lembrar que outras situações, as comorbidades, são muito mais importantes do que o tipo sanguíneo. Se este aumenta em 2,5 vezes, a doença coronariana pode aumentar em 20 vezes o risco, a diabetes entre 5 e 7 vezes… Então as comorbidades são muito mais importantes do que o tipo ABO, mas este também contribui um pouco”, aponta Santis.
Já em Passo Fundo (RS), a equipe do serviço de hemoterapia do Hospital São Vicente de Paulo passou a observar uma maior demanda por transfusões de sangue do tipo A em pacientes graves com covid-19 — e então resolveram investigar mais, publicando em novembro resultados preliminares na revista científica Hematology, Transfusion and Cell Therapy.
“Tivemos um aumento na demanda transfusional para esses pacientes, em especial do grupo A, então houve momentos, na gestão do nosso estoque, em que tivemos que chamar mais doadores do grupo A”, conta a hematologista Cristiane Rodrigues de Araújo, responsável pelo setor de hemoterapia do hospital e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Passo Fundo (UPF).
“Analisamos uma pequena amostra, de 53 pacientes em um universo de 1200 contaminados, que precisaram de transfusão sanguínea. Comparada com nossa demanda normal, que é 35% do grupo A, esses pacientes (graves com covid-19) eram 47% de sangue tipo A. Então lógico que precisamos de novos estudos, com amostras maiores, mas realmente encontramos uma prevalência um pouco maior (do sangue A) do que o habitual no nosso universo de pacientes.”
Uma equipe do Hemocentro de Goiás (HEMOGO) também publicou no ano passado resultados preliminares a partir de dados de 98 pessoas que tinham tido covid-19 e se voluntariaram para a doação de plasma convalescente. Este tratamento está em estudo no hemocentro e também já está sendo fornecido para alguns hospitais da região, mediante solicitação.
“Vimos que dos 98 pacientes, a maioria era do tipo sanguíneo O, e em segundo lugar, do tipo sanguíneo A — que é a distribuição na nossa população”, explica a hematologista Maria Amorelli, do HEMOGO, apontando que nestes dados sobre adoecimento, o tipo sanguíneo não pareceu influenciar.
Na avaliação de quadros graves, a equipe descobriu que a maior prevalência era de pacientes com sangue tipo AB, enquanto nenhum paciente do tipo sanguíneo A precisou de internação — indo de encontro aos resultados de outros estudos.
“Essa ideia de que todos os pacientes que não têm o anticorpo anti-A (entenda logo abaixo) estariam em maior risco, a gente não conseguiu confirmar.”
“Acredito que isso pode ter acontecido por uma série de fatores, uma delas a quantidade ainda pequena de pacientes que avaliamos. A outra é que a população de doadores é mais selecionada — em geral, pacientes do grupo O têm mais tendência a doar, porque têm aquela ideia de que este é o melhor sangue para a doação. Então precisamos de mais estudos, mas a literatura ainda não conseguiu confirmar essa associação (entre tipo sanguíneo e risco para covid).”
“Até então, as descobertas não foram relevantes a ponto de modificar nosso comportamento clínico em relação às doenças. Não é, por exemplo, algo que a gente pesquise de cara para saber se um paciente vai ter mais ou menos risco.”
“Então quem é do tipo sanguíneo A não precisa se desesperar, porque vários pacientes desse tipo tiveram a doença leve; e vários pacientes do tipo sanguíneo O também tiveram quadros graves”, aconselha a hematologista.
Anticorpos, antígenos e coagulação
A médica explica que antígenos são proteínas presentes nas células sanguíneas e que variam de tipo a tipo — um paciente do tipo sanguíneo A, por exemplo, tem o antígeno A. Foi, inclusive, pelo antígeno A que o coronavírus mostrou ter preferência no estudo publicado em março na revista Blood Advances.
Mas ter um tipo sanguíneo significa também ter anticorpos naturais contra os outros tipos — um paciente com sangue tipo A tem anticorpo anti-B; sangue tipo B, anticorpo A; e O tem anti-A e anti-B (não existe antígeno O ou anticorpo anti-O).
“São anticorpos naturais, até hoje a gente não sabe exatamente por que existem. A gente já sabe que são causadores de reações graves nos erros transfusionais: por exemplo, se um paciente O recebe sangue do tipo A, aquele anti-A vai hemolisar o sangue e gerar uma reação grave”, exemplifica a hematologista.
Além da função esperada de proteger contra um sangue que não é compatível, alguns cientistas passaram então a levantar a hipótese de que esses anticorpos naturais pudessem ter ainda outras funções.
“Sugere-se que talvez esse anti-A tenha um efeito protetor para algumas doenças virais, com o anticorpo dificultando a entrada do vírus na célula”, diz Amorelli.
Gil de Santis explica que as pesquisas sobre covid-19 têm focado na possível vulnerabilidade do antígeno A e no que seria um efeito protetivo do anticorpo anti-A, deixando muitas vezes de fora o antígeno B e o anti-B, porque o tipo A é muito mais numeroso do que o tipo B em populações como a brasileira.
Mas além dos antígenos e anticorpos, o médico explica que há ainda um terceiro fator que pode explicar a influência dos tipos sanguíneos na covid-19.
“A coagulação é mais intensa no sangue A do que no O, e a coagulação favorece a trombose”, diz, apontando que pessoas com tipo sanguíneo A tendem a ter mais componentes “pró-coagulantes”, o fator de Von Willebrand e o fator VIII, e pessoas com tipo O, menos.
“E uma das complicações da covid-19 é a exatamente a trombose, nos casos mais graves. O tromboembolismo pulmonar é uma complicação muito frequente em pacientes na UTI, em um terço, um quarto dos pacientes com covid grave. É uma barbaridade, uma complicação que a gente não via em outros tipos de infecções virais.”
E para quem desconfiou, após tantos dados favoráveis ao tipo sanguíneo O, Gil de Santis afirma que há indícios de que se trata de um beneficiado na seleção natural.
“O tipo O parece ser um mutante que deu certo, digamos assim.”