Durante a maior queimada da história do Pantanal, em 2020, Gabriela do Valle Alvarenga, de 26 anos, fazia contagem dos animais mortos. Ela caminhava sempre em dupla, revezando o trabalho de medição da área com outros e outras cientistas. No final, o estudo estimou 9 milhões de cobras assassinadas pelo fogo. Um exemplar “extremamente grande” de uma sucuri mudou, mesmo que ainda no meio da fumaça, a atmosfera do trabalho.
“Nós estávamos ali há horas fazendo contagem e só tinha serpente morta. Era um saco cheio de cobras e, aí, a gente pensava: ‘Não vamos encontrar nada vivo'”, contou Gabriela do Valle Alvarenga, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade da Universidade do Mato Grosso.
“De repente, nós vimos um bicho gigante, uma sucuri. Nós encontramos várias delas mortas de todos os tamanhos possíveis. E esse bicho era extremamente grande e nós ficamos superimpactadas”.
A sucuri estava protegida em um buraco e com uma aparência saudável. Segundo Gabriela, apesar do “cenário de filme de terror” e da dificuldade para respirar, encontrar uma cobra enorme no meio do trabalho foi inesperado e trouxe esperança.
“Encontramos vários sobreviventes na parte do solo. Como lagartos anfíbios, ratos, e a sucuri amarela. Diversos invertebrados”, lembrou. “Nós chegamos a observar no mesmo buraquinho um sapo, um opilião, um ratinho e um pouquinho de água no fundo. Nós desconhecíamos completamente que ainda era possível ter água no chão, mesmo que o fogo tenha passado por cima e deixado várias vítimas”.
O Pantanal já era objeto de pesquisa de Gabriela. Antes das queimadas, ela trabalhava com mimetismo de cobras corais. A cientista criava réplicas dos répteis e as colocava em posições estratégicas para os predadores. “Eu queria trabalhar com biodiversidade, mas não tinha nada a ver com o fogo”.
Ano passado, no entanto, aceitou trabalhar com o assunto junto à orientadora Christine Strüssmann. A pesquisa contabilizou o impacto da destruição nas espécies: mais de 17 milhões de vertebrados mortos entre janeiro e novembro do ano passado. As serpentes aquáticas representaram mais de 60% das vítimas. O avistamento da sucuri viva em meio ao cenário devastado foi uma exceção.
Por outro lado, uma surpresa desagradável
As botas que não aguentavam o calor durante as queimadas foram a menor das surpresas desagradáveis na pesquisa: as piores eram mesmo as carcaças de pequenos animais que enchiam sacos e mais sacos de coleta. A pior delas é a suspeita de que uma espécie em específico pode ter sido extinta pelas queimadas.
“Tem uma serpente aquática que só existe no Pantanal. Até hoje, no mundo inteiro, ela só foi encontrada lá. Em 2019, o artigo sobre ela foi publicado. A espécie foi descrita com apenas 1 exemplar. A gente só conhecia um indivíduo. E aí, depois, encontramos mais 5”, contou a pesquisadora.
Ela se refere à espécie Helicops boitata, cobra encontrada por quatro biólogos durante um passeio pela Transpantaneira, em 2016. Na época, os pesquisadores não imaginavam estar frente a frente com um réptil nunca antes descrito pela ciência. Em 2020, depois das caminhadas no meio da fumaça, Gabriela trouxe a dúvida sobre se essas cobras ainda existem no bioma.
“No fogo, encontramos vários indivíduos queimados e nenhum com vida. A gente tem essa preocupação. Essa espécie é rara e sofreu uma pressão muito grande com o fogo no ano passado. Não encontramos um indivíduo vivo. A gente nem sabe como está a situação dela [espécie] atualmente”.