“Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão. Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede. Ninguém podia fazer pipi, porque penico não tinha ali”.
O poema A Casa, de Vinícius de Moraes, transformada em canção de ninar pelo cantor Toquinho e que está na ponta da língua de milhões de brasileiros, serve exatamente para descrever a sede de uma empreiteira que fechou contratos no valor de R$ 4,2 milhões nos últimos anos com a prefeitura de Nioaque, a cidade dos dinossauros que fica a 180 quilômetros a sudoeste de Campo Grande. Fechou contratos também com as prefeituras de Alcinópolis e Aquidauana, totalizando outros R$ 2,4 milhões.
Esta casa, no Bairro Nova Lima, região norte da Capital, tem exatos 82,2 metros quadrados e não está na Rua dos Bobos número zero, mas na Rua Jaime Cerveira, número 618. Construída nos fundos do terreno de 360 metros quadrados, a edícula não tem mais portas, janelas e nem telhado. Está sem conexão com a rede de energia e de água. Vinícius de Moraes só errou no que se refere às paredes, pois é só o que resta.
Com muito esmero, por volta das 07:15 da manhã deste sábado (11) cinco integrantes de uma igreja evangélica que fica ao lado do terreno capinavam o lote e recolhiam lixo do interior daquilo que, em tese, é a sede da empreiteira Taquion Obras de Infraestrutura.
Ao serem abordados, informaram que o terreno foi comprado pela igreja e que ali nunca funcionou empresa nenhuma. Até bem pouco o local servia de abrigo para um grupo de haitianos, disseram.
No cadastro da prefeitura de Campo Grande, o imóvel, avaliado em R$ 54.445,38, ainda pertence a Shimpei Sato. Esse nome, por sua vez, remete ao proprietário da empreiteira, o homem que se identifica como sendo o empresário Salvio Shin Pereira Sato.
O endereço desta empreiteira, porém, chamou atenção e agora a empresa está na mira do Ministério Público Estadual, que nesta sexta-feira (10) publicou no Diário Oficial a abertura de um inquérito, que já tem 4.207 páginas, para investigar os contratos que ela fez com a prefeitura de Nioaque.
Inicialmente os negócios da Taquion andavam bem, tanto que venceu duas licitações para obras de asfalto e drenagem, totalizando R$ 2,17 milhões. No final de 2021, venceu uma terceira disputa, desta vez para construção de uma ponte sobre o rio no qual existem as famosas pegadas dos seres pré-históricos que transformaram Nioaque na “cidade dos dinossauros”.
O contrato garantiria faturamento de mais R$ 2,057 milhões. A ordem de serviço foi assinada em janeiro de 2022 e o prazo de entrega foi estipulado em oito meses. Havia pressa porque a queda da ponte antiga, que ruiu em 6 de agosto quando uma carreta com 45 toneladas passava pela estrutura feita para suportar apenas 15 toneladas, deixou centenas de moradores de chácaras e fazendas isolados.
Nove meses depois e com a obra longe de ser concluída, a prefeitura rompeu o contrato alegando descumprimento de normas contratuais. A empresa, por sua vez, recorreu à Justiça alegando que a demora era resultado da inércia da própria prefeitura, que estava devendo quase R$ 700 mil.
Ao recorrer e conseguir uma liminar para retomar o contrato, a empresa alegou estar sem dinheiro e pediu isenção da cobrança de custas processuais, mas a Justiça negou. Se o magistrado soubesse que a empresa funcionava em uma edícula sem portas, janelas, telhado, água e luz, provavelmente teria concedido a isenção.
Posteriormente esta liminar caiu e até o hoje a disputa judicial segue, mas a prefeitura acabou contratando outra empresa e a previsão é de que até dezembro a ponte finalmente esteja concluída, uma vez que as bases estão em fase de conclusão e o próximo passo será a colocação das vigas de concreto sobre o Rio Nioaque .
A CASA
Essa história nada engraçada chegou ao conhecimento da promotora Mariana Sleiman em abril deste ano, depois que a vereadora Rosemeire Meza Arruda, que chegou a ser secretária do prefeito Valdir Couto de Souza Júnior em seu primeiro mandato, resolveu formalizar uma denúncia sobre suposto jogo de cartas marcadas envolvendo a empreiteira e a administração municipal.
“Essa empresa Taquion venceu praticamente todas as licitações de obras grandes de Nioaque nos anos de 2020 e 2021, o que é no mínimo muito suspeito por causa do grande valor das obras”, escreveu em sua denúncia entregue ao MPE.
A citação aparece no documento logo depois de anexar fotos que ela mesma diz ter tirado da sede da empresa no Bairro Nova Lima. A vereadora revela que falou com vizinhos e que estes nunca viram empreiteira nenhuma funcionando naquele local. No muro aparece um resquício do numeral 620, mas no cadastro oficial da prefeitura o imóvel ao lado da igreja está com a numeração 618, exatamente como aparece nos documentos oficiais da empreiteira.
Agora, seis meses depois da apresentação da denúncia, o MPE promete fazer devassa não só no contrato da ponte, mas também nos outros dois. “Solicite-se apoio junto ao DAEX, para que a equipe técnica do MPMS realize a análise acerca da legalidade e regularidade dos processos licitatórios que ensejaram a celebração dos três contratos licitatórios celebrados entre a empresa Táquion Obras de Infraestrutura Ltda e a Prefeitura Municipal de Nioaque (Contratos nº 72/2021, 061/2021, 086/2020)”, diz a promotora na página 4104 do inquérito.
Atualmente existe uma passagem improvisada próximo ao local onde a ponte está sendo construída e até caminhões conseguem passar. Porém, quando o nível da água sobe, moradores da outra margem precisam fazer um desvio de 45 quilômetros para chegar à cidade.
Na sexta-feira (10) e neste sábado (11) o Correio do Estado entrou em contado uma série de vezes com o número de telefone citado no inquérito e que seria do advogado que representa a empreiteira. Na primeira tentativa, uma mulher atendeu e disse que não havia ninguém com o nome citado. Nas vezes seguintes, ninguém atendeu.
Fonte: Correio do Estado