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Por que Miami é um ‘caldeirão’ de conspirações contra governos da América Latina

Por Redação

Em 12 de agosto de 2021

Uma empresa de Miami é apontada como parte do complô que assassinou o presidente do Haiti. Foto: Getty Images

Ainda há mais perguntas que respostas em torno do assassinato do presidente do Haiti Jovenel Moise, baleado em casa no dia 7 de julho.

A polícia do país prendeu o médico de cidadania haitiana e americana Christian Emmanuel Sanson, residente do Estado da Flórida, nos EUA. Ele é suspeito de contratar mercenários colombianos para derrubar Moise.

As autoridades suspeitam que o crime foi orquestrado em coordenação com a CTU, uma empresa de serviços de segurança com sede em Miami, na Flórida, que abriga uma população considerável de haitianos.

Não é a primeira vez que Miami é envolvida numa trama de assassinato de chefe de Estado. Faz décadas que a cidade é apontada como “caldeirão” de conspirações contra governos da América Latina, segundo a jornalista Ann Louise Bardach, que tem ampla experiência em investigações sobre os périplos do exílio latino-americano na Flórida.

“Miami é a sede mundial dos exilados. É o lugar que abriga ‘governos em espera’ de uma gama de países caribenhos e latinoamericanos, começando por Cuba, mas também Haiti, Venezuela e Nicarágua”, disse Bardach à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

“Alguns (exilados) estão felizmente reassentados, mas outros ainda sonham e tramam para que novos governos assumam em seus países de origem”, acrescenta.

Além disso, os exilados em Miami também contam com uma cidade economicamente pujante, com ampla tradição de lobby político de influência nacional e um mercado prolífico de empresas particulares de segurança com quem formar alianças.

Histórico de conspirações

A relação de Miami com o exílio latinoamericano e os golpes contra governos na região têm uma data de início bem estabelecida.

Em abril de 1961, um exército de cubanos exilados durante os primeiros meses da revolução comunista de Fidel Castro invadiu Cuba para tentar instaurar novo governo na ilha.

A maioria dos exilados havia partido de Miami e, com ajuda da CIA, a agência de inteligência dos EUA, organizaram uma invasão armada de 1.500 homens, que foi contida pelas forças de Fidel Castro em menos de três dias.

Desde então, Miami se tornou o coração da oposição cubana, ganhando uma presença importante na política de Cuba. Por muitos anos, o rosto mais reconhecido do exílio cubano era o do político e empresário Jorge Mas Canosa que, em 1981, criou a Fundação Nacional Cubano-Americana.

Essa organização é acusada de planejar ataques terroristas na ilha, como as explosões de uma série de bombas em vários hotéis de Havana em 1997, que mataram um turista italiano.

O ex-agente de inteligência anticastrista Luis Posada Carriles, considerado um terrorista pelo governo de Cuba, afirmou, em entrevista ao The New York Times em 1998, que havia recebido dinheiro da Fundação para os atentados de 1997, ainda que tenha negado participação direta.

Posada Carilles morreu em 2018. Ele já havia sido acusado de participar do atentado de 1976 contra o voo 455 da Cubana Aviación, que matou 73 passageiros civis.

Ele foi preso na Venezuela naquele mesmo ano, mas fugiu da prisão em 1985 e viajou à América Central, de onde continuou sua missão de lutar contra a influência da esquerda na América Latina.

Em 2000, voltou à prisão no Panamá após ser acusado de tentar assassinar Fidel Castro, mas recebeu indulto da então presidente Mireya Moscoso.

Até a sua morte, Posada Carriles passou a maior parte do tempo nos Estados Unidos, enfrentando processos judiciais por violações a leis de migração e por falso testemunho ao solicitar a cidadania americana. Ele viveu os últimos anos em Miami, onde muitos o consideram um herói.

Venezuela

Nos últimos anos, o número de exilados venezuelanos em Miami cresceu. De maneira similar a muitos cubanos, eles fogem da crise econômica, da violência e do governo bolivariano a que muitos consideram ditatorial.

Também tem havido conspirações entre exilados da Venezuela em Miami. Em maio de 2020, a “Operação Gideon” fracassou. Tratava-se de um plano para sequestrar Nicolás Maduro, na Venezuela, e entregá-lo às autoridades dos EUA, que ofereceram US$ 15 milhões pelo presidente.

O plano foi comandado pela empresa de segurança Silvercop, fundada em 2018 em Miami por Jordan Goudreau, um excêntrico ex-militar americano que participou das guerras do Iraque e do Afeganistão e cujo paradeiro é desconhecido até hoje.

Cerca de 50 homens embarcaram em duas lanchas na Colômbia com a missão final de ocupar o palácio presidencial de Miraflores, em Caracas, retirar Maduro de lá e levá-lo para os EUA.

Mas as lanchas foram interceptadas por forças de segurança venezuelanas antes de desembarcarem. As Forças Armadas da Venezuela mataram oito dos homens. Dezenas de pessoas foram capturadas e permanecem presas. Dois americanos foram condenados a 20 anos de prisão num julgamento rápido a que muitos descrevem como ilegal. Alguns poucos escaparam.

As autoridades venezuelanas acusaram o opositor Juan Guaidó de orquestrar os atentados fracassados, mas ele nega as acusações. Parte da operação teve como cenário Miami.

Goudreau manteve reuniões na cidade para negociar o financiamento e o pagamento com membros da comissão presidencial de Guaidó, um grupo encarregado de explorar, em sigilo, formas de depor Maduro.

Um deles foi Juan José Rendón, um estrategista político de direita, venezuelano e com residência em Miami. Em uma entrevista à jornalista venezuelana Patricia Poleo, também residente de Miami e uma das vozes mais radicais do exílio, Goudreau disse que, apesar de a oposição “não ter pago” o que lhe prometeu, ele lançou a operação porque é um “combatente pela liberdade”.

Haiti

Agora os holofotes estão voltados para o Haiti, com o assassinato de seu presidente e a possível implicação de uma empresa de Miami. Embora o Haiti não tenha uma oposição contra o governo em exílio nos EUA tão forte quanto a cubana e a venezuelana, especialistas apontam uma correlação entre a ampla comunidade em Miami e os vínculos da elite com empresas de segurança privada, como a CTU.

“O Haiti tem tido muitos problemas com violência nos últimos anos. Por isso, a elite haitiana, boa parte residente habitual em Miami, tem aproveitado o grande mercado de segurança privada que está crescendo na Flórida para se protegerem”, explica à BBC News Mundo Jenna Ben-Yehuda, presidente do think tank americano Truman National Security Project.

Mercado prolífico de empresas de segurança

A CTU, empresa acusada de participar do golpe contra Moise no Haiti, e a Silvercorp, que estaria por trás da fracassada tentativa de derrubar Maduro, integram um prolífico mercado de empresas de segurança privada em vários Estados dos EUA, incluindo a Flórida.

São empresas geridas, em sua maioria, por ex-soldados americanos que encontram neste mercado um meio de sustento após o serviço militar.

“As guerras do Iraque, Afeganistão e Oriente Médio têm criado uma abundância de ex-soldados que abrem suas empresas e se convertem em consultores de segurança”, explica Eduardo Gamarra, professor da Universidade Internacional da Flórida.

“Na América Latina, ocorre o mesmo fenômeno, inspirado na tendência dos EUA. As guerras na Colômbia (contra guerrilhas e cartéis) geram uma quantidade enorme de combatentes treinados pelos EUA que logo se empregam como seguranças ou buscam outra forma de sustento.”

“O interessante agora, com o assassinato do presidente Moise, é que um exilado venezuelano é o dono da CTU, a empresa acusada de participação”, destaca Gamarra.

A sede da CTU fica em Doral, uma zona de Miami conhecida popularmente como Doralzuela, pela grande presença de venezuelanos que chegaram ali nas últimas décadas.

O seu dono, Antonio “Tony” Intriago, é um imigrante venezuelano acusado de viajar múltiplas vezes ao Haiti e de empregar soldados colombianos, os mesmo que foram presos pela polícia haitiana e que confirmaram vínculo com a CTU.

Os detalhes de por que foram contratados pela CTU e para quê ainda não foram esclarecidos. O pouco que se sabe é que a polícia haitiana considera Sanon, o médico, como principal suspeito.

A BBC Mundo contatou Intriago e a CTU para essa reportagem, mas não obteve resposta. Em sua página na internet, a empresa oferece coletes à prova de balas, sistemas sofisticados de vigilância, guarda-costas, vigias e detetives. Gamarra adverte que empresas de segurança como a CTU e a Silvercorp operam sem controle.

“A quem respondem essas empresas? Como cobram por tarefas como essas? Qualquer empresa dessas de Miami, fundada por qualquer indivíduo, pode ir à Colômbia hoje contratar um batalhão.”

Poder econômico

A Operação Gideon, como foi chamada a tentativa de derrubada de Maduro na Venezuela, os múltiplos atentados em Cuba e os vínculos de um exilado haitiano com o assassinato de Moise não se explicam sem um grande poder de financiamento.

Depois que foi criada, a Fundação Nacional Cubano-Americana recebeu milhões de dólares em doações, o que contribuiu para que se tornasse a principal arquiteta das políticas dos EUA para Cuba.

Muitos dos primeiros exilados eram grandes proprietários na Cuba pré-comunista que transferiram suas fortunas para Miami. Com uma história menos longeva que a da comunidade cubana em Miami, o exílio venezuelano também se inflou de capital na última década.

Quando os problemas no seu país aumentaram, muitos venezuelanos da elite escolheram Miami como refúgio.

Mas na era chavista, também se integrou a esse “exílio dourado” a nova burguesia que prosperou na sombra dos governos da Revolução Bolivariana.

Embora no caso haitiano o poderio econômico de sua elite não tenha se traduzido num lobby político forte como o cubano ou venezuelano, Ben-Yehuda adverte que os haitianos mais ricos que vivem em Miami atuam, em general, “com o objetivo de proteger a todo custo seu patrimônio no país de origem, ainda que não vivam permanentemente lá”.

Comunidades atingidas

Nenhum dos vínculos anteriores seria possível sem um sentimento comum que define a maioria dos exilados no sul da Flórida. “A rejeição a movimentos de esquerda do hemisfério sul é um fator de união hoje, ainda que muitos tenham desembarcado nos EUA fugindo de regimes de direita”, diz Bardach.

“Não gosto de chamar de ressentimento, mas muitos exilados sofreram muito nos seus países de origem. Aqui chegaram cubanos que estiveram presos, foram torturados ou perderam conhecidos em fuzilamentos”, explica Gamarra.

“Algo parecido acontece hoje com o exílio venezuelano. São pessoas que perderam uma luta política, que sentem que perderam seu país e que sofrem por ele e seus familiares”, diz o especialista.

Embora a maioria dos imigrantes no mundo tenha deixado seus países em busca de oportunidades econômicas, em Miami, vários chegaram por motivos políticos. Isso tem feito com que essas comunidades participem da política local americana, ainda que sempre pensando nos seus países de origem, encontrando identidade maior no Partido Republicano.

“Os cubanos são a força dominante na política do sul da Flórida e, consequentemente, no Estado. Eles têm muito espaço na política presidencial nacional”, conta Bardach.

De fato, na última campanha presidencial, o ex-presidente Donald Trump tentou agradar e manter os votos de uma grande parte do eleitorado na Flórida que apoiava suas políticas de mão de ferro para Cuba e Venezuela.

Trump, embora tenha perdido a eleição para Joe Biden, ganhou na Flórida por uma margem de 3,4 pontos percentuais, a maior desde 2004.

“O modelo de lobby politico cubano tem sido copiado pelos haitianos, mas sem tanto êxito. Já os venezuelanos de Miami conseguiram que, no último ano, sua mensagem fosse sentida nas urnas e em Washington. Os nicaraguenses também estão construindo sua própria marca nos negócios e na política”, avalia Bardach.

É comum em Miami que muitos migrantes votem em cada eleição com o propósito de ingerir nos seus países de origem. “A política doméstica de seus respectivos países influencia em como participam da política americana. Vemos isso não apenas em cubanos e venezuelanos. Os colombianos que apoiam Álvaro Uribe tendem a votar no Partido Republicano”, diz Gamarra.

“Cada grupo tem um grande alcance midiático, em sua maioria em espanhol, com emissoras de rádio e jornais próprios, além de blogs, perfis em redes sociais e canais no YouTube”, acrescenta Bardach.

Perguntada se os complôs das comunidades exiladas continuarão no futuro, a jornalista disse: “Pessoas como o médico haitiano que foi preso ou exilados cubanos não serão dissuadidas de empreender ações sigilosas ou diretas. Estão desesperados para que haja democracia em seus países.”

Diante dos protestos recentes contra o governo de Cuba, o prefeito de Miami, Francis Suárez, defendeu uma intervenção americana na ilha.

“E olha que Suárez se considera um republicano moderado”, observa Bardach.

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