Gosto de ser surda. Gosto do silêncio, assim como da rica cultura e da língua que a surdez me proporciona.
Quando vejo a palavra ‘surdo’ publicada, me vem à tona um sentimento de orgulho pela minha comunidade. É algo que fala comigo, como se eu estivesse sendo abordada diretamente, como se chamassem meu nome.
Então, sempre dói quando sou lembrada de que, para muitos, a palavra ‘surdo’ tem pouco a ver com o que eu mais amo — na verdade, suas conotações são quase sempre negativas.
Por exemplo, na imprensa do mundo todo não é raro ler que determinado governo ou autoridade “se fez de surdo”.
Este tipo de linguagem “capacitista” (que discrimina pessoas com deficiência) é onipresente em bate-papos.
Perguntar se alguém “está cego” porque não viu algo, dizer que “deu uma de João sem braço” ou que fulano tem “problema mental” para ofender, chamar um chefe de “psicopata” ou “bipolar”, falar para alguém “deixar de ser retardado” — são apenas alguns exemplos.
E, na maioria das vezes, as pessoas que proferem essas frases não têm a intenção de machucar ninguém — em geral, elas não têm a menor ideia de que estão fazendo algo nocivo.
No entanto, para pessoas com deficiência como eu, essas expressões comuns podem ser microagressões.
Por exemplo, “se fazer de surdo” mostra que a maioria das pessoas associa a surdez com a ignorância intencional (mesmo que não seja conscientemente).
Porém, muito mais do que insultos isolados, expressões como essas podem causar danos reais e duradouros às pessoas que se sentem desconsideradas por essas palavras e expressões — e até mesmo para quem as utiliza em conversas diárias.
Não é um problema pequeno
Cerca de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo — 15% da população global — tem algum tipo de deficiência documentada. No Brasil, segundo o Censo 2010 do IBGE, quase um quarto da população declarou ter algum grau de dificuldade em pelo menos uma das habilidades investigadas (enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus) ou possuir deficiência mental/intelectual. A incidência é semelhante nos EUA e no Reino Unido.
Apesar desses números, as pessoas com deficiência sofrem discriminação generalizada em quase todos os níveis da sociedade. Esse fenômeno, conhecido como ‘capacitismo’ — discriminação com base na deficiência — pode assumir várias formas.
O capacitismo pessoal pode ser um xingamento ou ato de violência contra uma pessoa com deficiência, enquanto a capacitismo sistêmico se refere à desigualdade que as pessoas com deficiência vivenciam como resultado de leis e políticas.
Mas o capacitismo também pode ser indireto, até mesmo não intencional, na forma de microagressões linguísticas.
Por mais que a gente goste de pensar que é cuidadoso na hora de escolher as palavras, o capacitismo linguístico está difundido no nosso vocabulário.
Os exemplos estão por toda parte na cultura popular, e provavelmente você mesmo já usou algumas expressões.
Muitas vezes, o capacitismo linguístico surge nas gírias que usamos, como falar para alguém “deixar de ser retardado” ou dizer que “fulano tem TOC” (transtorno obsessivo-compulsivo).
Embora possam parecer insultos ou exclamações casuais, ainda assim causam danos.
Jamie Hale, CEO da Pathfinders Neuromuscular Alliance, instituição de caridade do Reino Unido voltada e dirigida por pessoas com doenças neuromusculares, observa que o potencial de dano existe mesmo se as palavras não forem usadas contra uma pessoa com deficiência especificamente.
“Há uma sensação de que, quando as pessoas usam a linguagem capacitista, estão buscando maneiras de inferiorizar”, diz Hale.
“Muitas vezes não é uma tentativa consciente de prejudicar as pessoas com deficiência, mas ajuda a construir uma visão de mundo na qual ser uma pessoa com deficiência é [negativo].”
Usar uma linguagem que equipara a deficiência a algo negativo pode ser problemático de várias maneiras. Em primeiro lugar, essas palavras oferecem uma imagem imprecisa do que realmente significa ser deficiente.
“Descrever alguém como ‘aleijado’, ‘incapacitado’ é dizer que ele está ‘limitado’ [ou] talvez ‘aprisionado'”, afirma Hale.
“Mas não é assim que eu me sinto.”
Usar a deficiência como metáfora também é uma forma imprecisa de expressar o que realmente queremos dizer.
A frase ‘se fazer de surdo’, por exemplo, perpetua estereótipos e, ao mesmo tempo, mascara a realidade da situação que descreve.
Ser surdo é um estado involuntário, ao passo que as pessoas que “se fazem de surdas” diante de determinados apelos estão fazendo uma escolha consciente de ignorar essas solicitações.
Rotulá-las como ‘surdas’ as enquadra como passivas, ao invés de pessoas ativamente responsáveis por suas próprias decisões.
Hale acrescenta que usar a deficiência para designar algo negativo ou inferior reforça atitudes e ações negativas e alimenta os sistemas mais amplos de opressão existentes.
“Construímos um mundo com a linguagem que usamos e, enquanto nos sentirmos confortáveis com essa linguagem, continuaremos a construir e reforçar estruturas capacitistas”, diz.
O que isso quer dizer?
Se o capacitismo linguístico é tão prejudicial, por que é tão comum?
Por que alguém que nunca insultaria propositalmente uma pessoa com deficiência diretamente ainda encontra expressões capacitistas em seu vocabulário?
O capacitismo linguístico, como o coloquialismo, funciona como qualquer outra gíria: as pessoas a repetem porque ouvem outras dizerem, uma imitação que aparentemente sugere um uso sem discernimento.
Porém, de acordo com DW Maurer, professor de linguística da Universidade de Louisville, nos EUA, embora qualquer pessoa possa criar uma gíria, a expressão só “ganhará popularidade conforme a unanimidade de atitude dentro do grupo”.
Isso sugere que os jargões capacitistas são onipresentes porque, em algum nível, aqueles que falam acreditam que seja verdade.
É possível que as pessoas realmente não tenham consciência desses preconceitos dentro de si mesmas, tampouco do capacitismo que expressam no dia a dia.
Mas o fato é que as discussões sobre o efeito negativo de palavras como “surdo-mudo”, por exemplo, vêm acontecendo em círculos de pessoas surdas e com deficiência há séculos.