A crescente tensão entre o novo governo dos Estados Unidos, com Donald Trump à frente da Casa Branca, e a América Latina, é uma ótima notícia para a China, avaliam especialistas consultados pela BBC News Brasil.
As decisões do novo presidente americano de congelar programas de ajuda, bloquear refugiados e ampliar a deportação de migrantes — assim como a mais recente crise diplomática com a Colômbia — são apenas parte do problema, afirma Oliver Stuenkel, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador afiliado do think-tank Carnegie Endowment for International Peace, em Washington D.C..
Segundo o especialista, as ameaças feitas por Trump em relação à Groenlândia, o Canal do Panamá e o Golfo do México, assim como a decisão de classificar cartéis de drogas mexicanos como organizações terroristas, aprofundam a desconfiança em relação aos Estados Unidos e devem empurrar as lideranças latino-americanas para uma nova estratégia de alianças.
E a China pode ser uma das grandes beneficiadas.
“A resposta agressiva de Trump [à crise com a Colômbia] tem um custo e permite que a China se apresente como um parceiro mais previsível e menos intervencionista do que os Estados Unidos”, avalia Stuenkel.
No domingo (26/1), Donald Trump anunciou que a Colômbia seria alvo de punições por questionar a nova política de imigração do governo americano.
O presidente americano disse que iria impor imediatamente uma tarifa de 25% sobre todas as importações colombianas e aumentaria a tarifa para 50% em uma semana.
Washington também ameaçou impor sanções bancárias e financeiras contra a Colômbia, além de aplicar uma proibição de viagens e revogar vistos de funcionários do governo colombiano.
A medida foi uma retaliação à decisão do presidente colombiano, Gustavo Petro, de não autorizar o pouso de dois aviões militares americanos transportando cidadãos colombianos deportados pelos Estados Unidos.
Horas depois do impasse, porém, Colômbia e Estados Unidos anunciaram que Bogotá aceitaria todos os voos com imigrantes deportados — e que os Estados Unidos não adotariam sanções.
Mas o governo colombiano não foi o único a reagir às novas políticas migratórias de Trump.
O governo brasileiro convocou o encarregado de negócios da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, Gabriel Escobar, para prestar esclarecimentos sobre os voos enviados pelo governo americano com brasileiros deportados usando algemas.
Já o presidente do conselho presidencial transitório do Haiti, Leslie Voltaire, afirmou que as decisões do governo Trump de congelar programas de ajuda, deportar migrantes e bloquear refugiados serão “catastróficas” para o Haiti.
Diante de tudo isso, a presidente de Honduras, Xiomara Castro, que também lidera a Comunidade de Países Latino-americanos e Caribenhos (Celac), convocou uma reunião emergencial para discutir a resposta à política migratória de Trump. O encontro estava marcado para quinta-feira (30/1), mas acabou cancelado com a resolução do conflito entre EUA e Colômbia.
Em coletiva de imprensa no início do mês, antes mesmo de iniciar seu segundo mandato, Trump também cogitou comprar a Groenlândia (território autônomo da Dinamarca, país aliado dos Estados Unidos) e o Canal do Panamá, e não descartou o uso de força militar ou pressão econômica para atingir o objetivo.
O líder americano assinou ainda uma ordem para rebatizar internamente o Golfo do México de “Golfo da América” e determinou a designação de cartéis de drogas no México como organizações terroristas estrangeiras, provocando críticas e o temor do governo mexicano de uma ampliação da tensão com os grupos criminosos.
“Essas ações fazem com que a América Latina se sinta ameaçada pelos Estados Unidos e busque outros parceiros para lidar melhor com essa ameaça”, diz o professor de Relações Internacionais da FGV.
‘O melhor momento das relações’
Durante a disputa entre Estados Unidos e Colômbia, o embaixador da China em Bogotá, Zhu Jingyang, aproveitou para postar em suas redes sociais uma entrevista dada ao jornal El Tiempo na semana anterior.
Zhu destacou o fato de China e Colômbia estarem “no melhor momento” de suas relações diplomáticas, que completam 45 anos.
Interlocutores e analistas imediatamente interpretaram a postagem como um sinal de que a diplomacia chinesa acompanha de perto os últimos desenvolvimentos – e está pronta para ampliar sua cooperação não apenas com o governo colombiano, mas com toda a América Latina.
Posteriormente, o embaixador Zhu Jingyang pediu que não tirassem suas declarações de contexto e ressaltou que a declaração havia sido dada uma semana antes das disputas sobre a deportação de migrantes.
Quando questionada sobre a posição da China em relação ao tema, Mao Ning, uma das porta-vozes do Ministério de Relações Exteriores da China, disse que este era um assunto a ser discutido apenas entre EUA e Colômbia.
Ainda assim, especialistas veem o momento como uma oportunidade para a China expandir ainda mais seus investimentos e sua influência.
David Castrillon Kerrigan, professor-pesquisador da Universidade Externado da Colômbia, explica que a expansão da presença chinesa na América Latina já é uma realidade há pelo menos duas décadas.
Até 2000, o mercado chinês representava menos de 2% das exportações da América Latina.
Hoje, a China é o principal parceiro comercial da América do Sul e o segundo maior da América Latina, depois dos Estados Unidos.
Essa parceria têm se expandido tanto que alguns economistas preveem que o comércio entre China e América Latina pode ultrapassar US$ 700 bilhões até 2035.
“As relações entre China e América Latina já estão institucionalizadas e continuariam se expandido independente de quem estivesse na Casa Branca”, diz Kerrigan, que estuda as relações sino-latino-americanas.
“Mas obviamente ter Donald Trump no governo fez com que o cálculo dos países latino-americanos mudasse.”
Segundo o especialista, as lideranças da região se preocupam com a desarmonia entre suas agendas e àquelas propostas pelo atual presidente americano, especialmente em temas como combate às mudanças climáticas, combate ao tráfico internacional de drogas e desenvolvimento do Sul Global.
E isso tudo só aprofunda um desejo já existente da América Latina de diversificar seus aliados e passar a depender menos dos Estados Unidos, diz David Castrillon Kerrigan.
“Os países latino-americanos estão se voltando para quem estiver disponível para cooperar, seja em termos de desenvolvimento, de infraestrutura ou de outras questões. E a China é um desses países.”
Nos últimos anos, o governo chinês assinou acordos de livre comércio com Chile, Costa Rica, Equador, Nicarágua e Peru — e as negociações sobre um acordo com o Uruguai fracassaram após oposição do Mercosul.
Pequim também expandiu sua presença cultural, diplomática e militar por toda a região. Mais recentemente, inaugurou um megaporto no Peru como parte da sua iniciativa estratégica Nova Rota da Seda.
O projeto chinês vem sendo implementado há anos e tem entre os seus objetivos aumentar a presença e a influência chinesa no mundo.
Ao menos 22 países na América Latina e no Caribe já se juntaram à iniciativa e a Colômbia anunciou planos de fazer o mesmo em breve.
Os chineses vêm cortejando o Brasil a aderir ao projeto há anos, mas o governo resistiu até agora.
Ainda assim, o país é, de longe, o principal parceiro comercial da China na América Latina.
E é possível que esta relação continue a crescer, a julgar pelos 15 acordos comerciais bilaterais avaliados em cerca de US$ 10 bilhões (R$ 51 bilhões), que foram assinados pelos dois países durante a visita oficial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à China, em 2023.
‘Trump está ajudando política externa chinesa’
Para Evandro Carvalho, professor da FGV Direito Rio e especialista em economia e governança chinesa, a oscilação na política externa americana também pode estar empurrando as lideranças latino-americanas em direção à China.
“É como uma gangorra. No primeiro mandato, Trump apostou em uma política totalmente individualista e focada nos interesses estadunidenses. Depois Biden recupera o discurso do multilateralismo, só para Trump voltar e desfazer tudo”, diz Carvalho, que destaca a retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Acordo de Paris para o clima como parte da reversão liderada pelo republicano.
Segundo o analista, essa instabilidade é uma “sinalização péssima” para o resto do mundo e, em especial, para os países em desenvolvimento, que são bastante dependentes do multilateralismo e das organizações internacionais para avançar seus interesses.
O professor da FGV Direito Rio acredita ainda que a retórica de Trump em relação à imigração ilegal, com foco nos imigrantes latino-americanos, também sinaliza uma ideia negativa para os vizinhos do sul dos Estados Unidos.
“Isso contrasta diretamente com a política externa chinesa, que no discurso tende a manter o princípio da igualdade soberana”, diz Carvalho.
“Com essas atitudes hostis até mesmo com aliados históricos dos Estados Unidos, Donald Trump está, de certo modo, ajudando a política externa chinesa a se expandir ainda mais.”
Investimentos e empréstimos
Não são apenas as relações comerciais da América Latina com a China que chamam a atenção.
O investimento estrangeiro direto (IED) e os empréstimos de Pequim também desempenham um papel importante no fortalecimento dos laços com a região.
Segundo monitoramento da Rede Acadêmica da América Latina e Caribe sobre China (Red ALC-China), o investimento estrangeiro direto chinês na região alcançou US$ 8,7 bilhões em 2023 e gerou algo em torno de 26 mil empregos.
Os chineses, porém, ainda estão atrás dos Estados Unidos e da União Europeia (UE) quando se trata dos maiores investidores na região.
Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), os americanos foram responsáveis por 33% dos US$ 184 bilhões recebidos em IED em 2023. Os europeus aparecem em segundo lugar, com 22%.
Ao mesmo tempo, o Banco de Desenvolvimento da China, de propriedade estatal, e o Banco de Exportação e Importação da China estão entre os principais credores da região.
Desde 2005, as duas instituições emprestaram mais de US$ 120 bilhões a governos da América Latina e do Caribe, segundo o think tank americano Council on Foreign Relations.
David Castrillon Kerrigan explica que os investimentos de Pequim na região estão focados principalmente em projetos nas áreas de energia, telecomunicação, transporte e infraestrutura.
“À medida que os Estados Unidos dão as costas à região, talvez os países latino-americanos também se voltem para a China para outras áreas que talvez não tenham sido o foco da relação bilateral antes, como questões de justiça e combate ao crime ou desenvolvimento rural”, avalia Kerrigan.
- US$122 bilhõesBrasil
- US$43 bilhõesChile
- US$25 bilhõesPeru
- US$18 bilhõesMéxico
- US$7.9 bilhõesEquador
Fonte: Administração Aduaneira da República Popular da China
Relação EUA-China
Mas apesar das tensões comerciais, China e Estados Unidos ainda representam parceiros importantes — assim como uma potencial ameaça — um para o outro, lembram os especialistas.
Isso significa, na visão de Evandro Carvalho, da FGV, que a China pode estar aguardando o momento cento para começar a negociar com o novo governo de Donald Trump.
“Negociações sobre o futuro da relação bilateral podem implicar em concessões de ambos os lados”, diz Carvalho.
“E isso, por sua vez, pode ter repercussões nos interesses de outros países, especialmente dos países em desenvolvimento.”
Carvalho explica que um acordo entre as duas nações poderia levar, por exemplo, a China a ampliar a sua importação de soja dos Estados Unidos em detrimento da do Brasil e da Argentina, dois grandes fornecedores de Pequim atualmente.
Uma redução da dependência chinesa de outros recursos naturais exportados pela América Latina, como minerais e energia, também é aventada como uma possível consequência da tentativa de normalização das relações entre as duas potências.
Até o momento, Donald Trump não deu sinalizações sobre qualquer negociação concreta com os chineses.
O presidente americano disse, no entanto, que existe a possibilidade de um acordo comercial com a China e que prefere não criar tarifas de importação aos produtos chineses.
“Correu tudo bem. Foi uma conversa boa e amigável”, disse Trump sobre sua ligação com o presidente chinês, Xi Jinping, na semana passada.
Por outro lado, a China está no centro de muitos dos discursos e críticas do líder americano. O republicano tem, por exemplo, acusado o gigante chinês de controlar o Canal do Panamá.
Durante a cerimônia de posse, Trump prometeu retomar o controle da rota e não descartou a possibilidade de usar a força militar para isso.
“A China está operando o Canal do Panamá, e nós não o demos à China. Nós o demos ao Panamá e vamos tomar de volta”, disse o presidente americano.
Não há qualquer evidência de que o governo chinês controle a rota ou as forças militares em seu entorno, apesar de empresas chinesas terem uma presença significativa na região.
Em declarações antes da posse, Trump também citou a contenção da influência chinesa como pretexto para tomar o controle da Groenlândia.
O republicano argumenta que a Dinamarca deveria abrir mão da ingerência sobre o território para, nas palavras dele, “proteger o mundo livre”.
Ele também ameaçou impor tarifas se o país não cedesse.
Tanto a Dinamarca quanto o Panamá rejeitaram qualquer sugestão de que abririam mão dos seus respectivos territórios.
Fonte: BBC