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A complexa relação humana com o canibalismo ao longo da História

Por Redação

Em 15 de fevereiro de 2024

Ilustração do séculio 19 sobre sacrifícios humanos entre povos andinos. (Foto: Getty Images)

O recém-lançado filme A Sociedade da Neve, do diretor espanhol J.A. Bayona, sobre o lendário acidente de avião de uma equipe uruguaia de rugby nos Andes, em 1972, tem sido um sucesso estrondoso nos cinemas e plataformas de streaming em todo o mundo.

E um aspecto muito marcante desta história é a questão do canibalismo praticado pelos sobreviventes para conseguirem se manter por mais de dois meses numa montanha inóspita, cercados de neve, pedra e frio, a mais de 5 mil metros de altitude.

Sabe-se que, após o resgate, os jovens inicialmente esconderam da imprensa e familiares que tinham praticado canibalismo para sobreviver. Quando o fato foi descoberto, pouco tempo depois, eles foram julgados e censurados pela opinião pública e pelos meios de comunicação. E foram chamados, pejorativamente, de “canibais”.

Mas o que é canibalismo?

O canibalismo é definido como o ato ou a prática de comer membros da própria espécie. Refere-se geralmente a humanos que comem outros humanos. O caso mais antigo de canibalismo foi atribuído aos Neandertais, e há mais de 100 mil anos a gruta francesa de Moula-Guercy foi testemunha desse fato.

O canibalismo é uma prática documentada na África Ocidental e Central, na Melanésia, na Nova Guiné, em algumas ilhas da Polinésia e em tribos da Sumatra. Também era comum nas sociedades pré-estatais.

Na história contemporânea, alguns casos individuais foram atribuídos a indivíduos instáveis ou criminosos e a situações difíceis, como a crise alimentar na Ucrânia, na década de 1930, e na Segunda Guerra Mundial, durante o cerco de Leningrado e em Bergen-Belsen, de acordo com os oficiais britânicos que libertaram o campo de concentração.

Mas a sua atualidade é controversa. O que é geralmente aceito é que as acusações de canibalismo têm sido historicamente mais comuns do que a própria prática, como refere Alberto Cardín no livro Dialéctica y Canibalismo. O canibal foi quase sempre “o outro” no imaginário colonial.

O termo canibal é um legado de Cristóvão Colombo. É a deformação de “Carib”, um povo originário das Índias Ocidentais e que Colombo acreditava ser súdito do Grande Khan da China (kannibals).

Colombo, preparado para se encontrar com o Grande Khan, tinha consigo intérpretes de árabe e hebraico e, ao ouvir dos nativos a palavra “caniba” (ou “canima”), pensou que estes poderiam ser os homens com cabeça de cão (cane-bal) descritos pelo explorador John Mandeville.

Povos canibais

No transcorrer da história, os judeus já foram acusados de comer crianças cristãs, assim como os ciganos. Na Antiguidade, os gregos relataram casos de antropofagia entre povos não-helênicos, os “bárbaros”. E os espanhóis e portugueses fizeram o mesmo em relação à práticas antropofágicas registradas no Império Asteca, no México, durante as chamadas guerras floridas, e entre os índios Tupinambás do Brasil, nas primeiras décadas do período colonial.

Neste sentido, William Arens salientou que, para além dos casos de canibalismo praticado por necessidade, a prática é um mito e que a descrição de um grupo humano como canibal é apenas uma reivindicação retórica e ideológica para estabelecer uma superioridade moral sobre esse grupo.

Na mesma linha, Michel de Montaigne assinalava que na Europa, no século 16, qualquer pessoa ou coisa com hábitos diferentes aos tradicionais era chamada de bárbaro (ou canibal).

Ele considerava as guerras religiosas no seu país natal, a França, e a prática de tortura praticada pela própria Igreja mais bárbaros do que, por exemplo, a prática dos Tupinambás de ingerir o corpo de um defunto.

No entanto, a amplitude dos casos registados mostra que o canibalismo não é uma invenção. A definição mais recente de canibalismo de F. B. Nyamnjoh refere-se ao consumo de seres humanos de forma material, metafórica, simbólica ou fantasiosa.

Com efeito, a difusão da Internet contribuiu para multiplicar as fantasias canibais e sexualizadas de milhares de pessoas que sonham, nos fóruns, em devorar ou ser devoradas por membros do seu gênero sexual preferido.

Assassinos e canções dos Rolling Stones

Há casos extremos, como o do assassino em série Fritz Haarmann (“O Carniceiro de Hanôver”) ou Armin Meiwes, um técnico de informática de Rotenburg (Alemanha) que, em 2001, procurou por meio da Internet “um jovem rapaz, entre os 18 e os 25 anos” para comê-lo (o pedido foi bem sucedido, pois Jürgen B. concordou com a ideia e foi de fato morto e comido por Meiwes).

Um dos casos mais chocantes foi o do estudante japonês de literatura inglesa Issei Sagawa, que comeu um estudante alemão da Sorbonne em Paris, em 1981, descrevendo o ato em pormenores.

A forma como revelou este fato tornou-o um herói nacional no Japão e gerou vários best-sellers. Até os Rolling Stones lhe dedicaram uma canção em 1986: Too much blood.

O canibalismo não nos é estranho. O ato católico da Eucaristia e a comemoração da Última Ceia remetem à ideia de ingerir um totem, um símbolo sagrado de um grupo, clã ou linhagem, para absorver o seu poder distintivo. Por detrás do dogma da transubstanciação católica está expressa a ideia de adquirir a divindade (imortalidade, perdão dos pecados…) por absorção através da ingestão do corpo de Cristo. Este “canibalismo ritual” partilha muitas das características do conceito.

Noutras culturas da Ásia e da Austrália, por exemplo, acredita-se que comer o pênis de um tigre proporciona maior virilidade. Os indígenas baruya, de Papua Nova Guiné, acreditam que comer o inimigo (exocanibalismo) perpetuará a alma do comensal. Assim como os fore, também da Nova Guiné, buscam a eternidade ingerindo uma parte de uma pessoa falecida (endocanibalismo). Em suma: o corpo do outro é um alimento para o corpo, a mente e a alma.

A questão que se coloca é, por um lado, quem tem o direito de julgar e avaliar os aspectos contraditórios dos povos do passado. E, por outro lado, porque é que se tornou habitual pensar que o canibalismo é um costume extraordinário.

Um exemplo deste último caso está na obra do antropólogo francês Pierre Clastres, que fala da normalidade de fenômenos como a guerra e o canibalismo entre os indígenas guayaki como se fossem típicos de povos exóticos, quando em muitos casos estes povos foram as vítimas.

Já os Andamaneses da Baía de Bengala ganharam no Ocidente a reputação de canibais belicosos, como descreve Radcliffe-Brown em The Andaman Islanders (Os Ilhéus de Andaman, em tradução literal para o português, de 1922), pois faziam em pedaços as suas vítimas de guerra e costumavam pendurar os ossos dos seus antepassados.

De fato, foram escritos vários romances em que, invariavelmente, o enredo envolvia um naufrágio causado pelos recifes de coral ao largo da costa de Andaman, em que ocorriam episódios de canibalismo, contada a partir da história de um único sobrevivente.

Perversões individuais

O canibalismo seria um fenômeno mais típico, não de povos exóticos, mas uma consequência de perversões individuais, situações catastróficas e peculiares.

Nos anos 1990, jornalistas ocidentais escreveram sobre o canibalismo no contexto da guerra civil da Libéria (1989-1997). O historiador Stephen Ellis sugeriu que as causas não eram apenas políticas, mas podiam ser explicadas em termos religiosos ou espirituais característicos dos rituais das sociedades secretas.

Em suma, as descrições contemporâneas do canibalismo, que parecem ecoar os estudos arqueológicos, mostram que, de uma forma ou de outra, como assinalou Claude Lévi-Strauss, “somos todos canibais”.

*David Lagunas é professor de Antropologia da Universidade de Sevilla, na Espanha.

**Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em espanhol.

Fonte: BBC

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