Uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) levou o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a abrir um crédito extraordinário de R$ 1,35 bilhão para o Poder Judiciário, fora dos limites do arcabouço fiscal e da meta de resultado primário estabelecida para este ano. A corte determinou que o Executivo restituísse as diferenças retroativas dos limites de gastos concedidos abaixo do teto entre 2017 e 2019. O montante foi liberado no início de julho, com a maior parte (R$ 1,1 bilhão) destinada a despesas de pessoal.
Essa decisão contrariou o governo e gerou críticas no Legislativo. Consultores da Câmara dos Deputados, em nota técnica, consideraram que o tribunal agiu “sem base legal”, provocando fragilidade nas regras fiscais. Por outro lado, integrantes do TCU afirmam que a ordem de “restituir limites pretéritos” não configura uma ordem direta de pagamento, mas sim uma autorização, e que a liberação do valor se deu pela interpretação do Executivo.
O Ministério do Planejamento e Orçamento declarou que a abertura do crédito extraordinário atende às determinações do TCU. A corte, por sua vez, afirmou que as manifestações estão registradas nos acórdãos do processo e que “não há informações adicionais disponíveis”.
O impasse teve origem no teto de gastos, regra fiscal implementada em 2017 durante o governo de Michel Temer (MDB). Em 2019, o Ministério Público e o Judiciário acionaram o TCU alegando que o espaço fiscal concedido a eles havia sido menor do que o devido. O argumento era que o Executivo não havia incluído o pagamento de auxílio-moradia a procuradores e magistrados em 2016 nas bases de cálculo, que na época foi feito via crédito extraordinário, fora do teto de gastos.
Em decisões de 2019 e 2020, o TCU determinou a inclusão do auxílio-moradia na base de cálculo, resultando na ampliação dos limites de gasto do MP e do Judiciário em R$ 476 milhões para o ano de 2020. Contudo, o impasse continuou, com os órgãos cobrando a restituição dos limites não concedidos entre 2017 e 2019. Embora a autorização tenha sido concedida em 2020, a equipe econômica do então presidente Jair Bolsonaro (PL) não realizou o pagamento, resistência que continuou no governo Lula.
Em junho deste ano, a plenária do TCU voltou a discutir o caso a pedido do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, com o ministro Vital do Rêgo assumindo a relatoria. A decisão, ignorando a posição técnica contrária do tribunal, deu um prazo de 30 dias para que o Ministério do Planejamento e Orçamento cumprisse as determinações, restituindo os limites de gastos retroativos do Judiciário. Além disso, autorizou o governo a abrir um crédito extraordinário para o pagamento, descontando os valores da meta fiscal de 2024. Um mês depois, Lula editou uma Medida Provisória para liberar os recursos.
O Executivo demonstrou descontentamento com a decisão do TCU, pois, mesmo fora das regras fiscais, o pagamento aumenta a dívida pública brasileira. Houve pressão nos bastidores, com ministros do TCU relutantes em se indispor com o STF e a PGR. Segundo fontes, a diretoria-geral do STF enviou um ofício ao TCU solicitando a investigação de servidores do Executivo por descumprimento de decisões anteriores, o que foi interpretado como uma forma de pressão.
O acesso ao processo no TCU foi solicitado, mas o tribunal informou que a ação ainda está em andamento, e os documentos só podem ser requeridos pela Lei de Acesso à Informação. O STF não respondeu à solicitação dos documentos.
Técnicos do governo e da Câmara consideram que a decisão cria precedentes perigosos para outros órgãos reivindicarem limites retroativos e para a flexibilização dos critérios de abertura de crédito extraordinário, que deveria ser reservado para despesas urgentes e imprevisíveis. O relator no TCU reconheceu em seu voto que a situação “não se enquadra entre aquelas autorizadas a ensejar a abertura de crédito extraordinário”.
Consultores da Câmara, em nota técnica, afirmam que a apropriação de “espaços orçamentários pretéritos” é incompatível com o princípio da anualidade orçamentária e com o controle das despesas. Eles argumentam que a decisão subverte a lógica das regras fiscais estabelecidas desde 2017, transformando o teto de gastos em um piso e criando precedentes para classificar despesas não urgentes como excepcionais.
A maior parte dos recursos liberados será destinada a despesas com pessoal, incluindo o reajuste de 6% que entrou em vigor em fevereiro. Já existem emendas no Congresso à Medida Provisória sugerindo antecipar outra parcela de reajuste e direcionar recursos para o programa de saúde suplementar.
Fonte: Correio do Estado