De uma estante cheia de livros, sobraram apenas cinco exemplares. As mais de 50 taças de cristal foram substituídas por três copos de plástico. “Nossa vida toda precisou caber em três caixas e três malas, tivemos de nos desapegar de tudo”, conta a jornalista carioca Fernanda Portugal, de 50 anos. Ela, o marido e o filho adolescente deixaram praticamente tudo para trás e embarcaram na quarta-feira para o Canadá – país que não conhecem, mas onde pretendem morar por ao menos dois anos. Pode ser até mais tempo.
Eles não estão sozinhos. O sonho de uma vida melhor no exterior – e fugir do Brasil, marcado por longa crise econômica, violência urbana e fases de descontrole da pandemia – atrai cada vez mais gente. Não são apenas trabalhadores mais simples, como muitos daqueles saídos de Governador Valadares (MG), nem só a fuga de cérebros, dos que vão ocupar um emprego de ponta. São brasileiros de classe média, escolarizados, que cruzam a fronteira em busca de novas chances.
Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, houve alta de 16% no total de brasileiros no exterior entre 2018 e o ano passado: de 3,6 milhões para 4,2 milhões. Em uma década, o número aumentou 36%. Especialistas dizem ser difícil comparar o movimento dos últimos anos com períodos anteriores, mas veem aumento fora da curva.
“Esse movimento nos últimos anos é inédito e, de fato, representa a maior diáspora da história brasileira para os nossos padrões, um país que, historicamente, sempre recebeu imigrantes”, avalia Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Levantamento do Colégio Notarial do Brasil (CNB), que reúne os cartórios, indica alta de 67% nos apostilamentos no 2º semestre deste ano. Esse é o serviço de validação internacional de documentos pessoais, escolares e de dupla cidadania requeridos por quem vai morar fora. De junho a novembro, foram cerca de 912 mil apostilamentos, ante 544 mil no mesmo período de 2020.
Se analisar apenas as solicitações de visto para estudos ou abertura de processos de dupla cidadania, o salto é ainda maior: de 299,5 mil no 2º semestre do ano passado para 693 mil no mesmo período deste ano. Para Giselle Oliveira de Barros, presidente do CNB, os dados expõem essa saída de mão de obra mais qualificada.
Sem perspectiva
“Sempre tivemos o sonho de morar fora, mas quando fizemos 50 anos percebemos que ocupávamos cargos abaixo do que já ocupamos antes, ganhando menos do que já ganhamos e sem perspectiva de melhorar”, conta o também jornalista Flávio Pessoa, de 53, marido de Fernanda. “Uns meses depois do começo da pandemia, a gente se tocou também do quanto a vida é fugaz e do tanto de tempo que já tínhamos perdido sem realizar esse sonho.”
Com a mudança, acrescenta Fernanda, o casal vê mais chances de garantir boa formação acadêmica e empregabilidade do filho, de 14 anos. Fernan
da também mira os estudos: pretende cursar Turismo em uma universidade canadense. Já o marido não tem emprego em vista, mas, garante, está disposto a encarar qualquer desafio no exterior.
Um dos cinco livros que levaram nas malas é O Conto da Ilha Desconhecida, do português José Saramago. “Quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver. Não o sabes. Se não sais de ti, não chegas a saber quem és”, diz um trecho da obra.
PERFIS. Consultora especializada em imigração, a advogada Isabel Nardon diz que a reabertura de fronteiras causada pelo avanço da vacinação (agora abalada com a variante Ômicron, mais contagiosa) elevou a procura para Portugal. Segundo ela, o perfil dos que miram a residência lusa é de pessoas com poder aquisitivo: investidores e aposentados que têm como comprovar renda no Brasil, mas temem pelo futuro aqui.
A debandada aparece também no movimento de remessas financeiras. Só na corretora de câmbio B&T, que tem mais de 200 pontos e atua em mais de 180 países, dados apontam aumento da movimentação no exterior. Conforme registros da B&T até outubro, o volume de operações de transferências de moeda de Portugal para o Brasil, por exemplo, mais do que quadruplicou em 2021 ante o ano anterior.
Em alguns casos, facilidades expostas na pandemia também ajudam na mobilidade. Gustavo Da Broi, de 27 anos, chegou a Lisboa em outubro, para fazer mestrado em Direito Bancário e Securitário, com prazo de dois anos. “Estudo e trabalho daqui para o escritório”, conta ele, em referência ao escritório de advocacia onde atua, em Porto Alegre.
No caso do jovem, a cidadania ajudou na mudança e a adaptação foi tranquila. O clima de segurança e a qualidade dos serviços de transporte são apontados como diferenciais. “Como gaúcho, só sinto falta é do churrasco”, brinca Da Broi.
Professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que estuda migrações, Ana Maria Carneiro vê dois perfis principais. “Se a pessoa vai trabalhar numa entidade, numa universidade, se é empreendedora ou exportadora e se faz parceria de pesquisa, com certeza estará com a situação regularizada”, diz. “Por outro lado, pode ter gente qualificada, com graduação, que na literatura é considerada um talento, mas que estaria migrando de forma ilegal e vai atuar em profissões que não demandam a qualificação profissional que tem no Brasil.” Segundo ela, parte desse grupo ocupa até postos que não exigem qualificação formal, como os setores de limpeza, transporte ou de alimentos.
FLUXO. O médico Carlos Eduardo Siqueira, professor da Universidade de Massachusetts, de Boston, diz que há migração significativa, mas acredita que os dados do Itamaraty são
superestimados. Nos Estados Unidos, pelos dados oficiais, há 1,7 milhão de brasileiros – 360 mil estão em Boston, atrás de Nova York (450 mil) e Miami (410 mil). Siqueira, porém, estima que a comunidade brasileira em Boston não supere 100 mil. “A imigração brasileira para os EUA é contínua, mas não é constante.” Para ele, o Brasil viveu fase similar de desalento e migrações na gestão Fernando Collor (1990-1992).
Já para Guilherme Otero, do programa da Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas, os dados do Itamaraty podem estar subestimados. Ele diz que muita gente sai de forma irregular. Ou vai para o exterior para ficar seis meses regulares, como no caso dos EUA, mas não retorna. Além disso, destaca, há brasileiros com dupla cidadania que, quando migram, preferem o direito de usar o passaporte da outra nacionalidade.
Para Pedro Brites, da FGV, o dinheiro escasso está por trás do êxodo. “A questão econômica é o fator propulsor para qualquer tomada de decisão desse tipo, e o Brasil não atravessa um período exitoso há alguns anos. Isso efetivamente tira a perspectiva de oportunidades para boa parte da população.”
As sucessivas crises políticas – agravadas desde a eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018 – também pesam. “Essa turbulência afasta parte da população de nosso País”, afirma Brites, que aponta a falta de segurança pública como outro acelerador de despedidas.
Instalados
Entre os que trocaram de endereço há mais tempo, muitos dizem não se arrepender.
“Estou muito satisfeita”, conta a bióloga Bárbara, que abandonou tudo no Rio e foi viver com o marido e as duas crianças em Aveiro, região central de Portugal, no fim de 2017. “Migramos por causa da violência do Rio”, afirma. “Larguei tudo, meu trabalho, que eu amo, e me tornei uma migrante”, acrescenta ela, que vê a chegada de mais brasileiros. “E muita gente vem usando Portugal como porta de entrada na Europa.”
A paraense Suellen Vallaindhaim, de 26 anos, deixou o calor de Belém para morar em Trondheim, na gelada Noruega. Casada com um cidadão meio americano, meio norueguês, ela foi embora do Brasil no fim de 2018. Hoje, cria a filha de 2 anos nos fiordes do outro lado do mundo – e se vê cada vez mais acompanhada de conterrâneos. “Aqui também tem muitos brasileiros chegando.” Pelos dados do Itamaraty, a Noruega abriga 10.858 brasileiros. Somam-se a eles os 323 que vivem na Islândia, também atendidos pela Embaixada do Brasil em Oslo.
Suellen acaba de lançar uma loja de comércio virtual e estuda o complicado idioma norueguês. Para o futuro, quer fazer faculdade, mas não tem planos de voltar à terra natal. “Os primeiros meses foram muito difíceis, mas agora estou bem. Não penso em voltar, não.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.