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‘Me formar virou um pesadelo’: os brasileiros endividados com o Fies

Por Redação

Em 23 de agosto de 2021

Michele começou a ser cobrada pela dívida no Fies há quatro anos. Porém, ela nunca pagou nenhuma parcela. Foto: Arquivo Pessoal

O ingresso no ensino superior foi a concretização de um sonho, mas anos depois se tornou um pesadelo. Essa é a definição de Michele Pereira sobre o diploma de Administração que ela conquistou no fim de 2015.

“Venho da periferia e, até então, ninguém tinha ensino superior entre os meus familiares mais próximos. Achava que a universidade seria a minha chance de crescimento profissional e financeiro”, declara Michele à BBC News Brasil.

O pesadelo, diz ela, teve início há quatro anos, quando começou a ser cobrada para pagar as mensalidades do Financiamento Estudantil (Fies). Até hoje, Michele não pagou uma parcela sequer, pois argumenta que não teve condições financeiras para isso.

Após se formar, ela não conseguiu trabalho na área em que se formou. Por não ter pagado o financiamento, as parcelas acumularam e o nome de Michele foi negativado.

Casos como o dela não são difíceis de encontrar entre pessoas que concluíram o ensino superior por meio do Fies. A situação se tornou ainda mais grave em meio à crise causada pela pandemia de covid-19.

Em julho do ano passado, o Fies teve o maior percentual de inadimplência da história: 54.3% dos contratos não foram pagos naquele mês, segundo o Ministério da Educação, responsável pelo programa.

Atualmente há cerca de 1 milhão de inadimplentes com o financiamento, conforme a pasta — pessoas que estão com mais de 90 dias de atraso no pagamento das parcelas.

Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é fundamental que o governo discuta formas para facilitar os pagamentos das mensalidades.

O Ministério da Educação afirma, em nota à BBC News Brasil, que tem avaliado junto com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) “a publicação de nova renegociação de dívidas”. Porém, ainda não há previsão de quando isso ocorrerá.

‘Imaginava que sairia da faculdade ganhando R$ 7 mil’

Michele iniciou o curso superior em 2012, em uma instituição particular de Governador Valadares (MG). Era o primeiro governo Dilma Rousseff (PT) e o Fies estava no auge. Nesse período, o número de contratos disparou de cerca de 76 mil em 2010 para 732 mil em 2014.

Quando ingressou no ensino superior, Michele trabalhava em uma cooperativa de crédito. Foi justamente por causa do emprego que ela decidiu cursar Administração, pois queria conquistar um cargo melhor no local. Sem condições financeiras para arcar com as mensalidades, recorreu ao Fies de forma integral.

Os objetivos dela estavam traçados: concluir o ensino superior, conseguir um salário maior e pagar o financiamento sem impactar muito a sua renda.

“Imaginava que sairia da faculdade ganhando uns R$ 7 mil. Me lembro que quando comecei no curso havia um banner que dizia que profissionais de Administração ganhavam de R$ 4 mil a R$ 7 mil”, comenta.

Ela se formou quatro anos após ingressar no ensino superior. A realidade ao concluir o curso foi completamente diferente da que esperava no passado. Michele estava desempregada e precisava se dedicar integralmente ao filho recém-nascido.

Quando começaram as cobranças do Fies, sequer cogitou pagar as parcelas. “Não tinha a menor condição naquele momento”, desabafa. Ela foi colocada no cadastro de inadimplentes.

Quando o filho cresceu um pouco, Michele começou a procurar emprego. O nome sujo a impediu de encontrar vaga em uma área na qual ela sempre quis trabalhar. “Desde que eu era menor aprendiz, trabalhava em instituições financeiras, e sempre foi onde eu quis continuar trabalhando”, comenta.

“Passei por etapas de entrevistas em instituições financeiras, mas esses lugares não me contratavam porque meu nome está com restrição. Isso é complicado, sequer dão a oportunidade de mostrar trabalho”, diz.

Desde que concluiu o curso superior, ela passou cerca de três anos sem um emprego fixo. Hoje, Michele trabalha como vendedora. “Já fiz umas 10 entrevistas para diversos empregos relacionados à Administração, mas o meu nome sujo me impede de ser contratada. Só consegui trabalhos em outras áreas, mas queria mesmo era atuar na minha área, que é para a qual eu estudei e fiz vários cursos”.

Ela não tem, ao menos por enquanto, previsão para pagar as parcelas que deixou para trás, que hoje estão em torno de R$ 15 mil. “Há juros em cima de juros e a dívida está cada vez maior”, diz.

O contrato no Fies previa que ela pagasse os R$ 43 mil referentes ao curso ao longo de 15 anos. Michele, porém, admite não saber sequer quando começará a pagar o financiamento, porque argumenta que não tem condições financeiras para quitar os valores atrasados.

“Valeu a pena me formar e ter um diploma de ensino superior. Mas isso virou um pesadelo quando terminei o curso e caí na realidade”, lamenta.

‘Hoje a gente vive decidindo se come ou paga a dívida’

No cenário da pandemia de covid-19, os pagamentos do Fies também foram afetados. Diante da crise sanitária, que impactou duramente a economia, a dívida do financiamento se tornou um duro problema para muitos.

“Hoje a gente vive decidindo se come ou paga a dívida do Fies”, desabafa a fisioterapeuta Ilse Silva, de Recife, em Pernambuco.

A mulher e o marido usaram o Fies para concluir o ensino superior. Ilse se formou em fisioterapia em 2017. O marido dela, Ivan, concluiu o curso de Engenharia de Produção em 2015.

Nos primeiros anos, conseguiram pagar as mensalidades de R$ 460 do financiamento, sendo R$ 220 de Ivan e R$ 240 de Ilse.

O casal conseguia pagar as parcelas dos financiamentos todos os meses. Os dois trabalhavam nas respectivas áreas em que se formaram. Em 2019, Ivan saiu do emprego para abrir uma empresa de automação residencial.

Em março de 2020, ele precisou suspender o investimento, enquanto fazia treinamentos e após comprar equipamentos, por causa da pandemia. A situação ficou ainda mais difícil porque Ilse foi demitida.

Ivan precisou buscar uma nova fonte de renda. Ele se tornou motorista de aplicativo para conseguir pagar as contas da família — o casal tem dois filhos, de 19 e 17 anos.

“Nesse momento comecei a ajustar as contas e a escolher o que manter em dia e o que iria atrasar pela redução financeira em nossa casa. Então, estamos sem pagar o Fies desde março de 2020”, diz Ivan à BBC News Brasil.

Nesse período, o casal foi para o cadastro de inadimplentes. Segundo Ivan, o pai dele e a mãe dela, que foram fiadores dos respectivos filhos no Fies, também tiveram os nomes negativados.

Em dezembro passado, Ivan conseguiu um novo emprego na área de Engenharia de Produção, mas ganha menos do que antes. Nas horas vagas, ele continua trabalhando como motorista de aplicativo para complementar a renda. A esposa dele permanece desempregada.

Para Ilse, o Fies se tornou “uma bomba” que só piora a cada dia. “Em 2013, a oportunidade de fazer um curso superior através do Fies era a realização de um sonho, de ser inserido no mercado de trabalho com nível superior. Mas hoje, sem perspectiva nenhuma de trabalho, de nada, o Fies se tornou um acúmulo de dívida”, diz a mulher.

“É um constrangimento ficar o tempo todo recebendo ligação de banco, cobrando uma dívida que só cresce e que não tem perspectiva nenhuma de quitar”, acrescenta Ilse.

O casal ainda não tem prazo para retomar os pagamentos das parcelas do financiamento. “Voltar a pagar mais de R$ 400 mensais é muita coisa lá em casa. Não estamos em condições de retomar esse pagamento”, declara Ivan.

A trajetória do Fies

As histórias de Michele, Ivan e Ilse reforçam que o número de inadimplentes do Fies é também um retrato das dificuldades enfrentadas no país. Mas sem o financiamento, dificilmente eles teriam oportunidade de cursar o ensino superior.

O Fies é considerado um programa fundamental no país porque três em cada quatro universitários brasileiros estudam em estabelecimentos privados. Segundo o Censo da Educação Superior 2019, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do MEC, as instituições particulares são responsáveis por 75,8% dos estudantes de curso superior.

“Uma parcela muito importante dos que querem acesso à educação superior não têm meios de custeá-la. Quando olhamos para o ensino superior e notamos que a grande maioria das universidades são privadas, é preciso haver um financiamento. Isso não é apenas ganho individual, é também social”, declara Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

“Uma pessoa com o ensino superior e melhor qualificada produz mais e contribui mais para o desenvolvimento de uma nação”, acrescenta Alavarse.

Desde o fim dos anos 90, o Fies já foi utilizado por mais de 3,2 milhões de pessoas para a conclusão do ensino superior, segundo o governo federal.

Nos últimos anos, o financiamento deixou de ser uma alternativa para muitos estudantes. Isso teve início no começo do segundo mandato da ex-presidente Dilma, período em que o programa teve mudanças em suas regras. Na época, o número de beneficiados caiu para 287 mil estudantes, menos da metade do ano anterior.

Especialistas apontam que o Fies deixou de ser um atrativo para muitos estudantes em 2015, quando parou de garantir o financiamento de 100% das mensalidades.

Entre as mudanças de regras para o Fies passou a valer a exigência de que o estudante tenha obtido média acima de 450 pontos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Essas alterações foram adotadas após os problemas causados no boom do programa, em razão da alta inadimplência, que foi aumentando cada vez mais ao longo dos anos. Atualmente, conforme o FNDE, as parcelas em atraso somam R$ 7,3 bilhões que deixaram de ser pagos por beneficiários do programa.

No ano passado, o número de contratos do Fies foi o menor dos últimos 10 anos. O governo federal anunciou que havia 100 mil vagas disponíveis para o financiamento. Porém, uma reportagem da Folha de S.Paulo em novembro passado revelou que foram registrados apenas 47.082 novos contratos em 2020.

A reportagem da Folha cita que um dos motivos para a redução dos números de beneficiários foi o impacto da pandemia de covid-19, pois o Brasil passou por um período de incerteza sobre as aulas presenciais e muitos não quiseram se endividar por um curso online. Outro fator foram as mudanças nas regras do programa há seis anos, que até hoje afetam a busca pelo financiamento.

Um dado do Censo da Educação Superior 2019 também ilustra a atual situação do Fies. O levantamento apontou que 45,6% dos alunos da rede privada tinham algum tipo de financiamento ou bolsa em 2019. Desses, 19% eram beneficiários do Fies — cinco anos antes, o programa do governo federal era usado por 53% dos estudantes que precisavam de auxílio no ensino superior privado.

As incertezas do mercado de trabalho

Para aqueles que recorrem ao Fies, após a conclusão do ensino superior é preciso encarar as incertezas do mercado de trabalho e a preocupação com o início da cobrança da dívida. Se houver atraso de 30 dias no pagamento de uma parcela, o nome da pessoa logo é negativado.

Na busca por um trabalho, os dados são pouco animadores. O desemprego segue em alta, com taxa de 14,6% no trimestre encerrado em maio, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que corresponde a um contingente de 14,8 milhões de desempregados.

No período recente, um fenômeno também aumentou: o de profissionais qualificados e subutilizados.

Entre o quarto trimestre de 2019 e igual período de 2020, o número de trabalhadores com ensino superior subutilizados passou de 2,5 milhões para 3,5 milhões, um aumento de 43%, conforme levantamento feito pela consultoria IDados, a partir da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE.

A subutilização inclui os desempregados, subocupados (que trabalham menos de 40 horas semanais), os desalentados (aqueles que desistiram de procurar emprego); ou os que gostariam de trabalhar, mas por algum motivo — como ter que cuidar dos filhos ou de idosos, por exemplo — não estavam disponíveis.

O levantamento com base na Pnad mostrou que a taxa de desocupação entre os trabalhadores com ensino superior, que é historicamente mais baixa do que a dos trabalhadores em geral, passou de 5,6% no quarto trimestre de 2019, para 6,9% no mesmo período em 2020. Nesse mesmo intervalo, a taxa de desemprego para a população em geral subiu de 11% para 13,9%.

A diferença histórica no nível de desocupação entre os mais e os menos qualificados se explica pela parcela ainda relativamente pequena de pessoas com ensino superior no país.

Segundo o IBGE, 17,4% da população brasileira acima dos 25 anos havia concluído o ensino superior até 2019, dado mais recente.

Uma pesquisa feita no ano passado pelo Sindicato de Mantenedoras dos Estabelecimentos de Ensino Superior (Semesp), apontou que os alunos que concluem o ensino superior têm um aumento de renda mensal de 182%, levando em conta aqueles que já trabalhavam durante a graduação.

Apesar das dificuldades enfrentadas até mesmo por aqueles que têm o ensino superior, especialistas ressaltam que o diploma representa mais oportunidades e a oportunidade de cursar uma universidade precisa chegar a mais pessoas.

“Ter um diploma é importante. Sem isso, você fica aquém no mercado competitivo. O diploma é um filtro até para seleções. Mas claro, não é uma garantia”, diz o pesquisador Wilson Mesquita.

O ministro da Educação, Milton Ribeiro, recentemente fez uma declaração que foi contra o que é dito por especialistas. Em 9 de agosto, durante o programa Sem Censura, da TV Brasil, ele disse que a universidade deve ser para poucos.

Mais de uma semana depois, Ribeiro argumentou que fez a afirmação com base na inadimplência do Fies. Ele justificou, durante um evento da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), que a quantidade de inadimplentes do programa pode prejudicar novos financiamentos.

Ribeiro afirmou que é preciso “tomar cuidado” ao oferecer vagas no ensino superior, porque algumas pessoas “não têm ideia de que o fato de terem um diploma de ensino superior não é suficiente”.

“É, sim, uma ferramenta importante, mas não suficiente no Brasil como hoje vivemos de ter garantido seu emprego, e depois elas não conseguem pagar o compromisso que fizeram”, afirmou, na terça-feira (17/08).

Dias depois, o ministro voltou a dar declarações controvertidas sobre a questão: “Que adianta você ter um diploma na parede, o menino faz inclusive o financiamento do Fies que é um instrumento útil, mas depois ele sai, termina o curso, mas fica endividado e não consegue pagar porque não tem emprego”, afirmou.

‘É necessário um plano para que o aluno possa quitar o seu débito’

Enquanto o ministro tece críticas à alta inadimplência no Fies, especialistas avaliam que as medidas do Ministério da Educação para resolver o problema foram tímidas.

Nos últimos anos foram abertos dois prazos para renegociação dos contratos. Os resultados foram pouco expressivos e a inadimplência continuou em alta. Especialistas argumentam que as propostas não eram atrativas e incluíam condições que não estavam ao alcance de todos.

Em 2019, por exemplo, a renegociação exigia uma entrada de R$ 1 mil ou de 10% da dívida, o que tivesse o maior valor entre as duas opções. Apenas 2% dos estudantes em dívida com o fundo fizeram acordos nesse período para parcelar os pagamentos atrasados.

Para especialistas, o governo federal precisa conduzir ações que entendam o contexto da crise econômica e motivem o público-alvo a buscar uma forma de renegociar o financiamento.

“No Brasil temos vários incentivos do governo por meio de refinanciamento para empresas, para produtor rural ou para a indústria. Todos os anos a gente vê a Caixa Econômica com incentivo de pagamentos de dívidas com desconto de 100% de multas e juros. Mas para o Fies não existe isso”, declara Sólon Caldas, diretor executivo da ABMES.

Caldas diz que não é a favor de uma anistia para essas dívidas. Ele defende que sejam criadas formas de renegociar esse pagamento conforme as condições financeiras de cada pessoa.

“É necessário um plano para que o aluno possa ter condições de quitar o seu débito. Não é possível fazer uma proposta que não se enquadre na atual situação dos devedores. Se eles estão inadimplentes é porque não tiveram condições financeiras para honrar o compromisso”, afirma o diretor executivo da ABMES.

Segundo o Ministério da Educação, apesar de permanecer em alta, a taxa de inadimplência do Fies reduziu 2,2% de 2020 para 2021.

O MEC afirma que avalia uma nova renegociação para que os inadimplentes possam retirar seus nomes dos cadastros restritivos de crédito. Mas a pasta não deu mais detalhes sobre o tema.

Em junho, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que o governo estuda refinanciar as dívidas do Fies.

Além disso, há também Projetos de Leis que tramitam no Congresso Nacional para tentar amenizar as cobranças ou até suspender essa dívida durante a pandemia.

Para os endividados por causa do Fies, a esperança é que haja uma nova renegociação para que possam tentar limpar seus nomes. “Renegociar a dívida seria uma opção importante. É preciso algum acordo que motive a gente a voltar a pagar”, diz Ivan Silva.

Eleitora do presidente Jair Bolsonaro, Michele Pereira diz acreditar que ele pode pensar em uma estratégia para ajudar aqueles que têm dívidas com o Fies. “Ele poderia impedir a pessoa de parar no Serasa, porque assim ela terá uma oportunidade melhor de trabalho para pagar o financiamento”, sugere.

Em setembro do ano passado, Michele enviou uma mensagem a Bolsonaro no Twitter para pedir ajuda, pois queria renegociar a dívida com o Fies para sair da lista de inadimplentes. No entanto, ela não teve resposta.

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