As palavras de ordem no Brasil, hoje, são desencanto e desolação. Sem emprego, sem vacina, sem políticas públicas, com um governo amalucado e transformado em pária internacional, o brasileiro voltou a sentir aquela sensação estranha de inferioridade que tinha em relação ao resto do mundo num passado não muito distante. É o chamado “complexo de vira-lata”, sentimento definido pelo escritor Nelson Rodrigues no final dos anos 1950 e associado a uma profunda falta de autoestima nacional. Diante de tantas mazelas e do impacto devastador da Covid-19, os brasileiros ficaram mais tristes e acabrunhados e o turbilhão de emoções fez com que a esperança em dias melhores se tornasse uma utopia. Contribui fortemente para esse estado de coisas a inoperância do presidente Jair Bolsonaro, que não acredita na ciência e nem se incomoda com a desigualdade social. Hoje, ninguém em sã consciência consegue acreditar que o Brasil é o país do futuro. E mais do nunca vale a definição de Rodrigues: “O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”, declarou. É exatamente o que acontece hoje.
Para Nelson Rodrigues, a vitória na Copa de 1958 foi o momento sublime de recuperação da autoestima nacional. Além do futebol e do surgimento de Pelé, havia outros motivos para se sentir autoconfiante, como a industrialização acelerada, o desenvolvimento econômico e a revolução musical da Bossa Nova. Na ocasião, a vitória da seleção brasileira na Suécia serviu para fechar as feridas deixadas na derrota para o Uruguai em pleno Maracanã, oito anos antes, que derrubou a estima de um povo acostumado a driblar as adversidades para viver. Rodrigues fez questão de enfatizar que o termo não era restrito apenas ao futebol. “Por complexo de vira-lata entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca voluntariamente em face do resto do mundo”, explicou. Hoje, 70 anos depois, a pandemia e Bolsonaro, de certa forma, “colocam sal” nessa ferida que nunca se curou. Nossas ruas estão repletas de medo, tristeza e vergonha. Novamente, vivemos a vertigem do fracassoBolsonaro é uma espécie de anti-esperança diante do caos. Apenas o agrava. Embora exista um processo de vacinação em andamento, o ritmo é lento. Para muitos especialistas e profissionais da saúde, a imunização é quase uma guerra política repleta de egos inflados. No campo de batalha, com certeza, nosso “pelotão” segue desgovernado. Se a derrota na Copa de 1950 revelou o complexo de vira-lata e a de 1958, o curou, a pandemia atual embaralhou tudo novamente, além de alertar que o povo brasileiro está no limite e não aguenta mais tomar todo dia um “7 a 1” da Alemanha. É o caso do historiador paulistano Rafael Blessa, de 27 anos, que se sente abandonado pelo Estado. Como muitos profissionais da área da educação, ele passou por maus momentos desde o início da pandemia e teve de recorrer ao Uber para se sustentar, já que suas economias secaram em menos de três meses. Asmático, flertava com a chance de se contaminar a cada viagem, mas era preciso sobreviver. “Esse governo destrambelhado só pensa em si e nos seus. Eu me sinto angustiado porque não temos perspectiva de futuro”, diz. “Enquanto fico mais pobre e ansioso, há pessoas ficando ricas. Esse desgoverno está ampliando a desigualdade”, afirma.O antropólogo Roberto DaMatta, autor do clássico “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro”, diz que a situação política e econômica atual do País faz ressurgir a sensação de inferioridade e tira a esperança do povo. “Há um elemento fundamental hoje para o ressurgimento do viralatismo”, diz. “É a total transparência da sociedade, que revela a nossa desonestidade e malandragem”. Segundo DaMatta, outro motivo para o pessimismo é a irracionalidade do sistema político e do governo Bolsonaro, que se dedica a derrubar certezas, negar a ciência e criar um clima de apreensão permanente. Sem vitórias e impotente, o brasileiro, diz DaMatta, recupera a velha ideia de que é um povo errado. Soma-se a isso a interdição do carinho e do toque, decorrente da pandemia. Impedido momentaneamente de abraçar e de manifestar afeto, o brasileiro se acanha e pensa no pior. “Continuamos no dilema entre ser uma sociedade aristocrática ligada à Igreja e ser uma sociedade multiétnica e igualitária”, afirma o antropólogo.