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“Com injúria e racismo equiparados, esperamos sanções para tais crimes”

Foto: Gerson Oliveira

Mato Grosso do Sul registrou um aumento de 188% no número de boletins de ocorrência por discriminação racial neste ano. Ao todo, foram 32 casos de racismo notificados no Estado, segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). Em todo o ano passado, foram registrados 45 casos de racismo.

Em 2022, houve um aumento de 30% nos casos de discriminação racial nos sete primeiros meses do ano, em comparação com 2021.

Como noticiado anteriormente pelo Correio do Estado, Mato Grosso do Sul tem apenas um caso de racismo em processo de julgamento, os demais não passam de ocorrências e denúncias.

O caso se refere ao deputado estadual Rafael Tavares (PRTB), que, no dia 11 deste mês, foi condenado a dois anos e quatro meses de prisão por crime de ódio, em razão de uma publicação em que atacou negros, indígenas, japoneses e gays.

A publicação foi feita em 2018, quando Tavares era filiado ao PSL. O processo foi instaurado na Justiça em 2019. O juiz Eduardo Eugênio Siravegna Júnior, da 2ª Vara Criminal de Campo Grande, avaliou que, pelo teor da publicação, Tavares assumiu o risco de estimular pessoas a praticar discriminação ou preconceito étnico e racial.

Para a autora e mestra em Filosofia Política Djamila Ribeiro, que esteve em Campo Grande na quarta-feira, há uma barreira para que os casos de racismo sejam julgados, já que, muitas vezes, são categorizados como injúria racial, e não como crime de racismo.

Ela destaca que, com a equiparação entre injúria e racismo, “talvez agora, com essa mudança, a gente consiga ver talvez mais condenações nesse sentido”.

Djamila Ribeiro esteve em Campo Grande para o lançamento presencial do seu quarto livro, “Cartas para Minha Avó”. Durante o evento, a escritora distribuiu autógrafos e conversou com fãs.

Djamila Ribeiro ainda ministrou a palestra “Lugar de Fala”, na manhã de quinta-feira, para defensores públicos. Na ocasião, a filósofa abordou trabalhos voltados para a Justiça, chamando os servidores para refletirem criticamente sobre racismo estrutural, trazendo uma visão mais humana ao Direito.

Em sua passagem pela Capital, Djamila Ribeiro falou ao Correio do Estado sobre sua nova obra e os avanços no combate ao racismo no País.

Mato Grosso do Sul tem uma população indígena bem grande. Há também muitos conflitos, principalmente por terras, com a população branca. Como isso influencia na luta antirracista aqui no Estado? 

É uma ótima pergunta, porque, de fato, quando a gente fala de luta contra o racismo, a gente está falando dos povos negros e dos povos indígenas, que são os povos originários e que estão aí há tempos lutando pelo seu direito, pelas terras, pelo direito de manter as tradições e as culturas de seus povos. São povos no plural, culturas diferentes, línguas diferentes.

É fundamental que esse debate seja feito, que a população entenda o que de fato as populações indígenas estão reivindicando, porque a população no geral pensa que é um debate afastado, que não diz respeito a ela, mas os povos originários são os povos fundantes desse País.

Inegavelmente a gente precisa falar sobre a questão do meio ambiente, o quanto que o desmatamento está ligado diretamente à vida das populações indígenas, o quanto que essa lógica predatória está ligada diretamente ao modo de vida também dos povos indígenas – e tudo tá linkado.

Eu acho que, às vezes, as pessoas acham que o debate sobre os povos indígenas não diz respeito a elas, mas preservação da natureza e a manutenção das nossas culturas, a gente discutir a importância da preservação, a importância de a gente pensar a biodiversidade e a sustentabilidade, isso tem a ver com todos nós .

E eu acho e espero que a população entenda esse debate, o quanto que ele é fundamental e acate essas pautas dos povos indígenas.

Aqui no Estado, historicamente, só uma pessoa se tornou réu por crime de racismo. O que isso demonstra sobre como o racismo é tratado nas delegacias e sobre como as denúncias são feitas na esfera jurídica na tentativa de resolução desses casos? Há uma barreira para se comprovar esse tipo de crime? Ainda há essa dificuldade? 

Há uma barreira e, até o começo deste ano que acontecia, esses crimes muitas vezes eram colocados como injúria racial, e não como crime de racismo, crime de racismo é inafiançável.
Então, eram raros os casos em que isso acontecia. Só que, a partir deste ano, o primeiro ato do presidente Lula [PT] foi equiparar a injúria racial ao racismo.

Talvez agora, com essa mudança, a gente consiga ver talvez mais condenações nesse sentido, mas antes era muito jogado para esse lugar “acho que foi injúria racial”, não foi racismo, e a vítima tinha muita dificuldade de comprovar, uma vez que os operadores do Direito não tinham esse entendimento.

Agora que a injúria racial se equiparou ao racismo, a gente espera que de fato haja as sanções que são necessárias para esses crimes.

Você acredita que o Brasil tem conseguido avançar na luta contra o racismo? Quais pontos a gente ainda precisa melhorar? 

Tem muita coisa a avançar, mas, se a gente olhar para o contexto do Brasil, que foi o último país das Américas a abolir a escravidão, um país que no pós-abolição não criou nenhum tipo de política pública para inclusão da população negra, então, [é] um país que estruturalmente se organizou de maneira a deixar a população negra à margem da sociedade.

Eu acho que os movimentos negros e os intelectuais negros ao longo da história foram muito importantes. Primeiro, ao nos lembrarem que o Brasil era, sim, um país racista, uma vez que o Brasil negou durante muito tempo a existência do racismo, e, mais do que isso, ao assumir isso, se responsabilizar por criar políticas de reparação.

A gente teve algumas políticas importantes nas últimas décadas, isso é inegável, as políticas de cotas, as políticas de ações afirmativas, mas a gente ainda tem um longo caminho pela frente.

Eu penso que é inegável que nas últimas décadas, no Brasil, existiram avanços e eu acho que o avanço maior que a gente pode falar hoje é que esse tema está no debate público, hoje não se tem mais, não se escamoteia mais essa discussão, como era feito há muitos anos.

Em que pontos que a criação de um Ministério da Igualdade Racial pode ajudar para que estados e municípios tenham políticas públicas voltadas contra o racismo? 

Eu acho importante ter um ministério, claro, e acho que é importante que nos estados isso possa ser reproduzido em termos de secretarias, e de coordenadorias nos municípios.

Alguns municípios têm algumas coordenadorias de igualdade racial, eu acho que é fundamental que tenha, mas eu acho também que a gente não pode pensar que o Ministério da Igualdade Racial, se não tiver verba, se não tivermos orçamento, não conseguirá criar as políticas públicas necessárias.

A gente não pode achar também que discutir a questão racial é só nesse Ministério.

Eu acho que, às vezes, é a falta que os gestores públicos têm de perceber que quando a gente está discutindo, por exemplo, habitação, se a gente está falando em um país como o nosso, em que a maioria da população negra e indígena vive em moradias irregulares, vive em condições de vulnerabilidade ou é a população maior na situação de rua, na hora de discutir a habitação é necessário trazer a perspectiva de raça, assim como na hora de discutir educação a gente precisa de uma educação antirracista, na hora de discutir saúde, saber como essas populações são tratadas na saúde.

Então, é claro que eu comemoro o Ministério da Igualdade Racial, mas eu continuo esperando que os nossos governantes e gestores entendam que esse é um tema que perpassa todas as pastas de uma vez, que ele é estrutural, ele precisa ser enfrentado de maneira estrutural.

Como surgiu a ideia de escrever esse livro com suas memórias de infância e adolescência? 

“Cartas para Minha Avó” publiquei em 2021, foi no meio da pandemia, então, agora, em 2023, estou fazendo os lançamentos presenciais dele. E foi um processo bastante difícil de escrita, porque a gente visita uma série de memórias dolorosas, também os lutos, mas, ao mesmo tempo, foi um processo muito libertador.

Foi muito bom entregar um livro totalmente diferente dos outros que eu tinha e poder, acho, romper com essa visão de que a gente que é professor ou acadêmico não pode falar da nossa vida pessoal.

Então, para mim, foi um livro… Acho que é meu livro que mais gosto, porque ele me conecta com a minha ancestralidade feminina, com as mulheres da minha família.

Fonte: Correio do Estado

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Redação

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